As alvoradas são um acompanhamento das longas viagens de comboio, como os ovos cozidos, os jornais ilustrados, os jogos de cartas, os rios onde os barcos se esforçam sem avançar. Num momento em que eu enumerava os pensamentos que tinham preenchido o meu espírito durante os minutos precedentes, para perceber se tinha dormido ou não (e em que a própria incerteza que me levava a fazer a pergunta estava a fornecer-me uma resposta afirmativa), no vidro da janela, por sobre um bosquezinho negro, vi umas nuvens rasgadas cuja macia penugem era de um rosa fixo, morto, que não mais mudará, como o das penas da asa que o assimilou ou o pastel sobre o qual o depositou a fantasia do pintor. Mas sentia que, pelo contrário, aquela cor não era nem inércia nem capricho, mas necessidade e vida. Em breve se amontoaram por trás dela reservas de luz. Avivou-se, o céu tornou-se de um encarnado que eu, colando os olhos à vidraça, procurava ver melhor, pois sentia-o relacionado com a existência profunda da natureza, mas, como a linha férrea mudara de direcção, o comboio virou, e a cena matinal foi substituída, no cenário da janela, por uma aldeia nocturna de telhados azuis de luar, com um lavadouro envolvido pelo nácar opalino da noite, sob um céu ainda semeado de todas as suas estrelas, e fiquei desolado por ter perdido a minha faixa de céu cor-de-rosa quando a avistei de novo, mas desta vez vermelha, na janela em frente, donde saiu numa segunda curva da linha férrea; de tal modo que passei o tempo a correr de uma janela para a outra a fim de tornar a aproximar, a enquadrar os fragmentos intermitentes e opostos da minha bela manhã escarlate e versátil, e ter dela uma vista total e um quadro contínuo."
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (II - à Sombra das Jovens em Flor)
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