sábado, 4 de setembro de 2010

"É a nossa atenção que põe os objectos num quarto, e é o hábito que os retira, abrindo lugar para nós. Lugar era o que não havia para mim no meu quarto de Balbec (meu de nome, apenas); estava cheio de coisas que, não me conhecendo, me devolveram o olhar desconfiado que lhes lancei e, sem levarem minimamente em conta a minha existência, demonstraram que eu perturbava o ramerrão da sua. O relógio de parede - enquanto em casa só ouvia o meu alguns segundos por semana, quando saía de uma profunda meditação - continuou, sem se interromper um instante e numa linguagem desconhecida, a tecer considerações que deviam ser desagradáveis para mim, pois as grandes cortinas roxas escutavam-no sem responder, mas numa atitude análoga à das pessoas que encolhem os ombros para mostrar que a visão de um terceiro as irrita. Davam àquele quarto tão alto um carácter quase histórico, que poderia torná-lo apropriado ao assassínio do duque de Guise, e mais tarde a uma visita de turistas conduzidos por um guia da Agência Cook - mas de modo algum ao meu sono. Eu era atormentado pela presença de pequenas estantes envidraçadas, que corriam ao longo das paredes, mas sobretudo por um grande espelho de pés, atravessado no meio do quarto e antes da partida do qual eu sentia que não haveria para mim descanso possível. Erguia a todo o momento o olhar - que os objectos do meu quarto de Paris não incomodavam mais que as minhas próprias pupilas, pois não eram mais do que anexos dos meus órgãos, uma ampliação de mim mesmo - para o tecto soerguido daquele miradouro situado no cimo do hotel e que a minha avó havia escolhido para mim; e, até nessa região mais íntima do que aquela em que vemos e ouvimos, nessa região em que experimentamos as qualidades dos odores, era quase no interior do meu eu que o odor do vetiver vinha trazer aos meus últimos redutos a sua ofensiva, à qual eu opunha, não sem fadiga, a riposta inútil e incessante de um fungar alarmado. Não tendo mais universo, mais quarto, mais corpo, que não fosse ameaçado pelos inimigos que me rodeavam, que não fosse invadido até aos ossos pela febre, eu estava só, queria morrer. Então a minha avó entrou; e imediatamente se abriram espaços infinitos à expansão do meu coração confrangido."
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (II - à Sombra das Jovens em Flor)
(Ler na língua original)

Sem comentários:

Enviar um comentário