quinta-feira, 9 de setembro de 2010

"Mas o dia seguinte de manhã! Depois de um criado ter vindo acordar-me e trazer-me água quente, e enquanto eu me arranjava e em vão tentava encontrar na minha mala as coisas de que precisava, tirando apenas, numa confusão, as que não podiam servir para nada, que alegria, pensando já no prazer do almoço e do passeio, ao ver na janela e em todas as vitrinas das estantes, como nas escotilhas do camarote de um navio, o mar nu, sem sombras, e, contudo, à sombra em metade da sua superfície delimitada por uma linha delgada e móvel, e ao seguir com os olhos as vagas que se lançavam uma atrás da outra como saltadores num trampolim! A cada momento, segurando na mão a toalha tesa e engomada que trazia escrito o nome do hotel e com a qual eu fazia inúteis esforços para me enxugar, voltava à janela para lançar mais um olhar sobre aquele vasto circo deslumbrante e montanhoso e para os cumes nevados das suas vagas em pedra de esmeralda, aqui e ali polida e translúcida, as quais, com uma plácida violência e um leonino franzir, deixavam realizar-se e desabar o desmoronamento das suas encostas, às quais o sol acrescentava um sorriso sem rosto. A essa janela havia eu de acercar-me todas as manhãs como à vidraça de uma diligência na qual se dormiu, para ver se durante a noite se aproximou ou se afastou uma desejada cordilheira - aqui, estas colinas do mar que, antes de voltarem para nós a dançar, podem recuar tão longe que, muitas vezes, era só no fim de uma longa praia arenosa que eu avistava a grande distância as suas primeiras ondulações, numa lonjura transparente, vaporosa e azulada como os glaciares que se vêem no fundo dos quadros dos primitivos toscanos. Outras vezes, era muito perto de mim que o sol ria sobre aquelas vagas de um verde tão tenro como o que conserva nas pradarias alpinas (nas montanhas onde o sol se estende aqui e ali, como um gigante que desce alegremente, aos saltos desiguais, as suas encostas), não tanto devido à humidade do sol, mas mais à líquida mobilidade da luz. De resto, naquela brecha que a praia e as vagas abriam no meio do resto do mundo para ali fazerem passar, para ali acumularem a luz, é sobretudo a luz, segundo a direcção de onde vem e que o nosso olhar segue, que desloca e situa os vales do mar. A diversidade da iluminação não modifica tanto a orientação de um lugar, não ergue tanto diante de nós novas metas como nos inspira o desejo de alcançar, mais do que o faria um trajecto longa e efectivamente percorrido numa viagem. Quando, de manhã, o sol vinha de trás do hotel, descobrindo diante de mim os areais iluminados até aos primeiros contrafortes do mar, parecia mostrar-me uma outra vertente e convidar-me a empreender, no caminho giratório dos seus raios, uma viagem imóvel e variada através dos mais belos sítios da acidentada paisagem das horas. E, desde a primeira manhã, o sol designava-me ao longe, com um dedo sorridente, aqueles picos azuis do mar que não têm nome em qualquer carta geográfica, até que, aturdido com o seu sublime passeio à superfície ruidosa e caótica das suas cristas e das suas avalanchas, veio abrigar-se do vento no meu quarto, recostando-se na cama desfeita e derramando as suas riquezas no lavatório molhado, na mala aberta, onde, com o seu próprio esplendor e o seu luxo deslocado, aumentava ainda mais a impressão de desordem."
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (II - à Sombra das Jovens em Flor)
(Ler na língua original)

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