sábado, 9 de outubro de 2010

O Retrato de uma Senhora, tal como Roderick Hudson, foi começado em Florença, durante os três meses que ali passei na Primavera de 1879. (...) É um longo romance, e eu alonguei-me a escrevê-lo. Lembro-me de ter ficado outra vez muito ocupado com ele no ano seguinte, durante uma estada de várias semanas em Veneza. Estava instalado na Riva Schiavoni, no andar superior de uma casa perto da passagem para San Zaccaria; a vida à beira da água, a laguna espantosa estendiam-se à minha frente, e a incessante tagarelice humana de Veneza chegava-me às janelas, para as quais me dá a impressão de ter sido constantemente atraído, na agitação infrutífera da composição, como que para ver se, lá fora no canal azul, se avistaria o navio de alguma sugestão certa, de alguma expressão melhor, da próxima reviravolta feliz do meu argumento, do próximo toque de verdade para a minha tela. Mas recordo muito vivamente que a resposta que, em geral, mais obtinha para estes apelos inquietos era a admoestação algo severa de que os locais românticos e históricos, como os que abundam nas terras de Itália, oferecem à concentração do artista um auxílio discutível quando não são eles o tema. São demasiado ricos na sua vida própria e estão demasiado carregados com os seus próprios significados, para se limitarem a dar-lhe uma ajuda numa expressão duvidosa; desviam-no da sua pequena questão para as deles, bem maiores, de modo que um pouco depois, quando perante a dificuldade, suspira assim por eles, sente-se como se estivesse a pedir a um exército de veteranos gloriosos que o ajudasse a prender um vendedor ambulante que lhe deu o troco errado. Há páginas do livro que, na releitura, pareceram fazer-me ver novamente a curva eriçada da larga Riva, as grandes manchas de cor das casas avarandadas e a ondulação repetida das pequenas pontes corcovadas, marcada pela subida e descida, com as ondas, das figuras em ponto pequeno dos que passam batendo os pés. O ruído de passos veneziano e o grito veneziano - qualquer conversa, onde quer que ocorra, tem ali a intensidade de um chamamento atravessando a água - chegam uma vez mais à janela, renovando a velha impressão dos sentidos deliciados e da mente dividida e frustrada. Como é possível que os sítios que, em geral, tanto falam à imaginação, não lhe dêem logo aquilo mesmo de que precisa? Recordo-me de,repetidas vezes em lugares belos, cair nesse espanto. A verdade é que, penso, sob este apelo, exprimem demasiadas coisas - mais do que é possível usar no caso em questão, de forma que afinal damos connosco a trabalhar menos apropriadamente, no que diz respeito ao quadro circundante, do que na presença do moderado ou neutro, aos quais podemos emprestar um pouco da luz da nossa visão. Um lugar como Veneza é demasiado orgulhoso para tais esmolas; Veneza não pede emprestado; apenas dá com toda a magnificência. Nós lucramos imenso com isso, mas para tal é preciso ou não estar de todo em serviço ou estar exclusivamente ao serviço dela.
Henry James, O Retrato de uma Senhora (Prefácio) 

Sem comentários:

Enviar um comentário