quarta-feira, 20 de outubro de 2010

"Pierre continuou a passear lentamente através do esplendor sem alma do jardim. Resplandecentes no ar diáfano e morto, havia milhares de soberbas flores, como se não fossem reais e vivas. E, de tempos a tempos, tornava a encontrar Albert ou a mãe ou o pai, que passavam por ele e uns pelos outros, caminhando sempre no mesmo rígido alheamento.
Pareceu-lhe que assim era já há muito tempo, talvez há anos, e que aqueles outros tempos, em que o mundo e o jardim haviam estado vivos, as pessoas haviam sido alegres e faladoras, e ele próprio, cheio de satisfação e turbulência, esses tempos jaziam incrivelmente longe, num passado profundo e cego. Talvez tivesse sido sempre assim, tal como agora, e o antigamente fosse apenas um lindo sonho disparatado.
Finalmente, chegou a um pequeno tanque de pedra, onde o jardineiro enchia, dantes, os regadores e onde ele próprio tinha posto, em tempos, uns quantos minúsculos girinos. A água estava imóvel, numa claridade verde, reflectia o rebordo de pedra e as folhas pendentes de um arbusto com flores amarelas estreladas e tinha uma aparência bonita, mas abandonada e, de algum modo, infeliz, como tudo o mais.
- Se alguém cai lá para dentro, afoga-se e morre - dissera, uma vez, o jardineiro. Mas a água não era nada funda.
Pierre chegou-se à beira do tanque oval e debruçou-se.
Viu, então, a sua própria cara reflectida na água. Ela parecia-se com as caras dos outros: velha, pálida e profundamente enregelada numa severidade impassível.
Assustado e admirado, ele viu isso, e, de súbito, subjugaram-no irresistivelmente o íntimo horror e a absurda tristeza da sua situação. Tentou gritar, mas não houve qualquer som. Quis pôr-se a chorar alto, mas só conseguiu fazer uma careta e sorrir desajeitadamente.
Nessa altura, veio o seu pai outra vez a andar e Pierre voltou-se para ele, num esforço imenso de todas as suas forças espirituais mobilizadas. Toda a angústia mortal e todo o insuportável sofrimento do seu coração desesperado se refugiaram num soluçar mudo implorando auxílio ao pai, que se aproximava, na sua calma fantasmagórica, e de novo não parecia vê-lo.
- Pai! - quis gritar o garoto. E, embora nenhum som se pudesse ouvir, contudo a violência da sua terrível necessidade chegou até ao silencioso solitário do outro lado. O pai voltou a cara e olhou para ele.
Com o seu perspicaz olhar de pintor, olhou-o atentamente nos olhos suplicantes, sorriu fracamente e acenou-lhe ao de leve com a cabeça, bondoso e lastimoso, mas sem oferecer consolação, como se não houvesse ali mesmo nada a fazer. Por um breve instante, uma sombra de amor e de sofrimento comum passou pelo seu rosto severo e, nesse breve instante, ele não foi mais o poderoso pai, mas antes um pobre irmão desamparado.
Depois dirigiu outra vez o olhar em frente e foi-se embora lentamente, com o mesmo passo regular, que não havia interrompido.
Pierre viu-o ir e desaparecer. O pequeno tanque, o caminho e o jardim das flores escureceram, diante dos seus olhos horrorizados, e sumiram-se como nuvens de neblina. Acordou, com as têmporas a doer e a garganta seca a arder, viu-se sozinho, deitado na cama no seu quartinho sombrio, tentou relembrar-se, não encontrou, porém, quaisquer recordações e voltou-se, exausto e desalentado, para o outro lado.
Só lentamente lhe voltou a plena consciência e o fez sentir algum alívio. Era mau estar doente e ter dores de cabeça, mas era suportável e, em comparação com o sentimento mortal daquele sonho angustioso, até era fácil e suave."
Hermann Hesse, Roßhalde

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