sábado, 8 de janeiro de 2011

"Eu tinha-lhe envolvido parcialmente a cabeça com uma mantilha de renda branca, dizendo-lhe que era para que não tivesse frio na escada. Não queria que a minha mãe notasse muito a alteração do rosto, o desvio da boca; mas a minha precaução era inútil: a minha mãe aproximou-se da minha avó, beijou-lhe a mão como se fosse a do seu Deus, amparou-a até ao elevador, com precauções infinitas onde havia, com o receio de ser desajeitada e de a magoar, a humildade de quem se sente indigno de tocar aquilo que conhece de mais precioso, mas não ergueu os olhos uma única vez, nem fitou o rosto da enferma. Talvez fosse para que esta se não entristecesse ao pensar que a sua aparência poderia inquietar a filha. Talvez por receio de uma dor muito forte que não ousou afrontar. Talvez por respeito, porque não cria que lhe fosse permitido constatar sem impiedade a marca de alguma debilidade intelectual no rosto venerado. Talvez para melhor conservar mais tarde, intacta, a imagem do rosto verdadeiro da minha avó, radioso de espírito e de bondade. Assim subiram, uma ao lado da outra, a minha avó meio oculta na sua mantilha e a minha mãe desviando os olhos.
Entretanto, havia uma pessoa que não tirava os seus do que se podia adivinhar das feições alteradas da minha avó que a sua filha não ousava ver, uma pessoa que pregava nelas um olhar espantado, indiscreto e de mau augúrio: era Françoise. Não porque não estimasse sinceramente a minha avó (até ficara quase desiludida e escandalizada com a frieza da mamã que gostaria de ver atirar-se em prantos para os braços da sua mãe), mas tinha uma certa tendência para pensar sempre o pior, conservara da infância duas particularidades que pareciam dever excluir-se, mas que, quando juntas, se fortalecem: a falta de educação da gente do povo, que não procura disfarçar a impressão, ou mesmo o susto sempre doloroso causado pela visão de uma alteração física que seria mais delicado não dar mostras de notar, e a rudeza insensível da camponesa que arranca asas às libelinhas antes de ter ocasião de torcer o pescoço aos frangos, e que carece do pudor que a faria esconder o interesse que sente ao ver a carne que sofre."
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (III - O Lado de Guermantes)

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