sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

"Subi e encontrei a minha avó pior. Havia algum tempo que, sem saber muito bem o que tinha se queixava da saúde. É na doença que nos apercebemos de que não vivemos sozinhos, mas acorrentados a um ser de um reino diferente, de que nos separam abismos, que não nos conhece e pelo qual é impossível fazermo-nos compreender: o nosso corpo. Qualquer que seja o assaltante com que nos deparemos numa estrada, talvez possamos torná-lo sensível ao seu interesse pessoal, ou mesmo à nossa desgraça. Mas pedir piedade ao nosso corpo é discorrer diante de um polvo, para o qual as nossas palavras não podem ter mais sentido do que o rumor das águas, e com o qual ficaríamos apavorados de ser condenados a viver.
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(...) como a medicina é um compêndio dos erros sucessivos e contraditórios dos médicos, recorrendo aos melhores de entre eles, tem-se grandes possibilidades de implorar uma verdade que será reconhecida como falsa passados alguns anos. De modo que acreditar na medicina seria a suprema loucura, se não acreditar não fosse uma maior, pois desse amontoado de erros desprenderam-se com o tempo algumas verdades.
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A senhora tem aquilo que eu descrevi sob o nome de albumina-mental. Todos nós tivemos, durante uma indisposição, a nossa pequena crise de albumina que o nosso médico se apressou a tornar duradoura, quando no-la revelou. Por cada afecção que os médicos curam com medicamentos (pelo menos diz-se que isso aconteceu algumas vezes), produzem dez em indivíduos com saúde, inoculando-lhes esse agente patogénico, mil vezes mais virulento que todos os micróbios, a ideia de que se está doente. Tal crença, poderosa sobre o temperamento de todos, age com uma eficácia particular nos nervosos. Diga-lhes que uma janela fechada está aberta nas suas costas, e começam a espirrar; faça-os crer que lhes deitou magnésio na sopa, e terão cólicas; que o seu café está mais forte do que de costume, e não pregarão olho toda a noite.
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- Vá aos Campos Elísios, minha senhora, ou para junto do maciço de louros de que o seu neto gosta. O louro ser-lhe-á salutar. Purifica. Depois de ter exterminado a serpente Píton, foi com um ramo de louro na mão que Apolo entrou em Delfos. Queria desse modo preservar-se dos germes mortais do venenoso bicho. Bem vê que o louro é o mais antigo, o mais venerável, e acrescentarei (o que tem muito valor em terapêutica e também em profilaxia) o mais belo dos anti-sépticos.
Como grande parte do que os médicos sabem lhes é ensinado pelos doentes, facilmente são levados a crer que esse saber dos «pacientes» é o mesmo em todos, e gostam de surpreender a pessoa com quem se encontram com alguma observação aprendida com os que trataram antes. Assim, foi com o sorriso fino de um parisiense que, conversando com um camponês, esperasse espantá-lo ao servir-se de uma palavra de dialecto, que o doutor du Boulbon disse à minha avó: «Provavelmente o tempo ventoso consegue fazê-la dormir quando os mais poderosos hipnóticos fracassariam.» «Pelo contrário, doutor, o vento não me deixa dormir nada.» Mas os médicos são susceptíveis. «Ah!», murmurou du Boulbon, franzindo as sobrancelhas, como se lhe tivessem pisado um pé, e as insónias da minha avó em noites de tempestade fossem para ele uma injúria pessoal. No entanto, ainda assim não possuía um amor-próprio excessivo e como, na qualidade de «espírito superior», considerava um dever não acreditar na medicina, depressa recuperou a sua serenidade filosófica.
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Consinta que lhe chame nervosa. A senhora pertence a essa família magnífica e lamentável que é o sal da terra. Tudo quanto conhecemos de grande vem-nos dos nervosos. Foram eles e não os outros que fundaram as religiões e compuseram as obras-primas. Jamais o mundo saberá tudo o que lhes deve e sobretudo o quanto sofreram para lho darem. Apreciamos as finas músicas, os belos quadros, mil delicadezas, mas não sabemos o que custaram aos que os inventaram, insónias, lágrimas, risos espasmódicos, urticárias, asmas, epilepsias, numa angústia de morte que é pior que tudo isso, e que a senhora provavelmente conhece - acrescentou, sorrindo para a minha avó -, pois, confesse, quando cheguei, não estava muito tranquila. Julgava-se doente, gravemente doente, talvez. Sabe Deus de que afecção julgava descobrir em si os sintomas. E não se enganava, pois tinha-os. O nervosismo é um imitador de génio. Não há doença que não simule às maravilhas. Imita, a ponto de enganar, a dilatação dos dispépticos, os enjoos da gravidez, a arritmia do cardíaco, a febre do tuberculoso. Capaz de enganar o médico, como não enganaria o doente? Ah! Não pense que troço dos seus males, não me resolveria a tratá-los se não os soubesse compreender.
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Não, eu não culpo a sua energia nervosa. Apenas lhe peço que me escute; confio-a a ela. Que faça marcha atrás. A força que empregava em impedi-la de passear, de comer o suficiente, que a empregue em fazê-la comer, ler, sair, distrair-se de todas as maneiras. Não me venha dizer que está cansada. O cansaço é a realização orgânica de uma ideia preconcebida. Comece por não pensar nele. E, se alguma vez tiver uma pequena indisposição, o que pode acontecer a toda a gente, será como se não a tivesse, pois ela terá feito de si, segundo uma expressão profunda do senhor de Talleyrand, um são imaginário. Olhe, já começou a curá-la, a senhora escuta-me bem direita sem se ter apoiado uma só vez, com o olhar vivo e com boa cara, faz meia hora contada pelo relógio, e não se apercebeu disso. Minha senhora, tenho a honra de lhe apresentar os meus cumprimentos."
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (III - O Lado de Guermantes)

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