domingo, 6 de fevereiro de 2011

"Da altura a que nos encontrávamos, o mar já não se via, como em Balbec, semelhante às ondulações de montanhas soerguidas, mas, pelo contrário, tal como aparece de um pico ou de uma estrada que contorna a montanha, como um glaciar azulado ou uma planície deslumbrante situados a menor altitude. O recorte dos remoinhos parecia imobilizado e ter desenhado para sempre os seus círculos concêntricos; o próprio esmalte do mar, que mudava insensivelmente de cor, adquiria no fundo da baía, onde se cavava um estuário, a brancura azul de um leite onde barquinhos pretos, que não avançavam, pareciam apanhados como moscas. Não me parecia que se pudesse descobrir, em parte alguma, um quadro mais vasto. Mas, a cada curva, vinha juntar-se uma parte nova, e, quando chegámos a Doville, o esporão da falésia que até então nos escondera metade da baía recolheu-se, e vi subitamente à minha esquerda um golfo tão profundo como o que até ali tivera diante de mim, mas alterando-lhe as proporções e redobrando-lhe a beleza. O ar, nesse ponto tão elevado, tomava-se de uma vivacidade e pureza que me inebriavam. (...)
Às portas da povoação, quando o carro parou por um instante àquela altura acima do mar, e a vista do golfo azulado, como que de um cume, quase causava vertigens, abri a janela; o rumor distintamente percebido de cada onda que rebentava tinha, na sua suavidade e na sua nitidez, algo de sublime. Não seria como um índice de medição que, alterando as nossas imprecisões habituais, nos mostra que as distâncias verticais podem ser assimiladas às distâncias horizontais, ao contrário da representação que delas faz habitualmente o nosso espírito; e que, aproximando assim de nós o céu, não são maiores; que até são menores para um ruído que as transpõe, como fazia o das pequenas ondas, pois o meio que tem de atravessar é mais puro? E, com efeito, se recuássemos somente dois metros deixaríamos de distinguir esse rumor de vagas a que duzentos metros de falésia não haviam tirado a sua delicada, minuciosa e suave precisão. Eu dizia-me que a minha avó sentiria por ele essa admiração que lhe inspiravam todas as manifestações da natureza ou da arte em cuja simplicidade se lê a grandeza. A minha exaltação estava no auge e enaltecia tudo quanto me cercava."
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (IV - Sodoma e Gomorra)

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