"É já do seu conhecimento a concepção errónea e eventualmente maléfica de que o homem é uma unidade duradoura. Também é do seu conhecimento que o homem consiste numa multiplicidade de almas, de inúmeros eus. É considerado loucura cindir nestas incontáveis fracções a aparente unidade da pessoa, é aquilo a que a ciência deu o nome de esquizofrenia. A ciência tem razão no sentido em que não é possível domar uma multidão sem orientação, sem uma certa ordem e um certo agrupamento. Em contrapartida, peca supondo que apenas é possível ordenar os muitos sub-eus uma única vez durante toda a vida, e para sempre. Este erro da ciência tem certas consequências funestas, o seu único mérito resume-se em simplificar o trabalho de professores e educadores empregados pelo Estado, e poupar-lhes reflexão e experimentação. É na sequência deste erro que se toma por "normal", por expoente social, muita gente que é irremediavelmente louca, e que inversamente se faz passar por loucos outros tantos que afinal são génios. Daí completarmos a lacunar doutrina espiritual da ciência com o conceito a que chamamos 'arte da reconstrução'. Demonstramos àquele que assistiu ao despedaçar do seu eu que a qualquer momento pode voltar a arrumar as peças na ordem que lhe aprouver, podendo assim consumar a infinita multiplicidade do jogo da vida. Assim como o escritor a partir de um punhado de personagens cria um drama, assim nós a partir das figuras do nosso eu retalhado construímos grupos sempre novos, com jogos e tensões sempre novos, situações eternamente novas. Ora veja!"
(...)
"É isto a arte da vida", proferiu doutamente. "A partir de agora o senhor mesmo poderá moldar e animar, intrincar e enriquecer o jogo da sua vida como lhe apetecer, está nas suas mãos. Assim como a loucura num sentido elevado é o princípio de toda a sabedoria, assim também a esquizofrenia é o princípio de toda a arte, de toda a imaginação."»
Hermann Hesse, O Lobo das Estepes
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