terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

«Estendeu-me um espelho, e nele revi a unidade da minha pessoa desintegrar-se em muitos eus, tantos que pareciam até mais do que da primeira vez. Só que as figuras agora eram muito pequenas, do tamanho pouco mais ou menos de peças normais de xadrez; e o jogador, pegando com gesto firme e silencioso em duas ou três dúzias, colocou-as no chão junto ao seu tabuleiro. E monocordicamente, como alguém que debita uma lição ou um discurso não sei quantas vezes já recitado, falou:

"É já do seu conhecimento a concepção errónea e eventualmente maléfica de que o homem é uma unidade duradoura. Também é do seu conhecimento que o homem consiste numa multiplicidade de almas, de inúmeros eus. É considerado loucura cindir nestas incontáveis fracções a aparente unidade da pessoa, é aquilo a que a ciência deu o nome de esquizofrenia. A ciência tem razão no sentido em que não é possível domar uma multidão sem orientação, sem uma certa ordem e um certo agrupamento. Em contrapartida, peca supondo que apenas é possível ordenar os muitos sub-eus uma única vez durante toda a vida, e para sempre. Este erro da ciência tem certas consequências funestas, o seu único mérito resume-se em simplificar o trabalho de professores e educadores empregados pelo Estado, e poupar-lhes reflexão e experimentação. É na sequência deste erro que se toma por "normal", por expoente social, muita gente que é irremediavelmente louca, e que inversamente se faz passar por loucos outros tantos que afinal são génios. Daí completarmos a lacunar doutrina espiritual da ciência com o conceito a que chamamos 'arte da reconstrução'. Demonstramos àquele que assistiu ao despedaçar do seu eu que a qualquer momento pode voltar a arrumar as peças na ordem que lhe aprouver, podendo assim consumar a infinita multiplicidade do jogo da vida. Assim como o escritor a partir de um punhado de personagens cria um drama, assim nós a partir das figuras do nosso eu retalhado construímos grupos sempre novos, com jogos e tensões sempre novos, situações eternamente novas. Ora veja!"
(...)
"É isto a arte da vida", proferiu doutamente. "A partir de agora o senhor mesmo poderá moldar e animar, intrincar e enriquecer o jogo da sua vida como lhe apetecer, está nas suas mãos. Assim como a loucura num sentido elevado é o princípio de toda a sabedoria, assim também a esquizofrenia é o princípio de toda a arte, de toda a imaginação."»
Hermann Hesse, O Lobo das Estepes

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