A minha crónica publicada
no JL de 15 de Dezembro passado, consagrada à “literatura com
gatos”, ia dedicada, entre outros, à minha gatinha e companheira,
Secotine, ali dada como “felizmente viva e incrivelmente activa”.
Quando escrevi a crónica, a bichinha estava, de facto, viva e
saudável; quando foi publicada, ela estava já doente, mas em vias
de recuperação, embora em tratamento ambulatório,
pós-internamento; já depois do dia 1 de Janeiro, teve uma recaída
súbita e, apesar de todos os esforços que fizemos para salvá-la,
deixou de viver, no dia 9, às 20.00 horas, numa clínica veterinária
em S. Pedro do Estoril. Foi, para nós, que a amávamos, um
verdadeiro terramoto emocional. E foi este que veio alterar, por
completo, o tom e o conteúdo desta segunda crónica consagrada aos
elegantes felinos, e por mim anunciada no final da anterior.
Pensara falar-vos, longamente, em escritores que amenizavam a solidão do seu ofício, chamando para junto de si, enquanto arranhavam o papel com a caneta ou martelavam o teclado, a companhia do gracioso e peludo amigo. Kingsley Amis, por exemplo, sobretudo conhecido pelo celebérrimo romance Lucky Jim, não só escrevia sempre na presença do seu “Hertfordshire White”, a que dera o nome de Sarah Snow, como “tinha as maiores reservas acerca de pessoas que não tivessem animais domésticos.” Costumava até dizer, com algum acinte: ”Sou suficientemente amante de gatos para que se me torne suspeita uma casa onde não haja gatos. Associo uma pessoa que tenha um gato com alguém mais afável do que as outras pessoas.” Como todo o verdadeiro “cat lover”, não se envergonhava de confessar que conversava assiduamente com o seu bichano. E estava perfeitamente convencido de que a Sarah Snow andava a tentar seriamente aprender inglês. Eu sei que isso é possível, porque a minha Secotine falava fluentemente macedónio, português e inglês, e arranhava umas coisas de espanhol e francês. E posso prová-lo, mas não me darei sequer a esse trabalho, porque considero ultrajante que alguém duvide da minha palavra. Bastaria dizer-vos, a título ilustrativo e não demonstrativo(porque, repito, não desço a fazer demonstrações), que, num dia em que vociferava por todo o lado à procura dos meus óculos, a Secotine veio ter comigo e, numa repetida e ansiosa linguagem de corpo, insistiu comigo para que fosse atrás dela. Impaciente, disse-lhe que não estava com tempo para lhe apaparicar os caprichos, visto que precisava dos óculos. Não desistiu e insistiu no convite para que a seguisse. Desesperado, acabei por fazê-lo, visto que acabava sempre por ceder aos seus pedidos. Fui atrás dela, que se voltava, de vez em quando, para trás, a confirmar que eu a seguia, e acabou por me conduzir a um vaso, no terraço, onde tinha deixado os óculos!, Se isto, caro leitor, não quer, para si, dizer nada, desculpe, mas o meu amigo é completamente obtuso!
Tinha também planeado
falar de Théophile Gautier e do seu obsessivo amor
por este supremo produto da criação, que é o
gato. Desmond Morris definiu este escritor como “um
fanático amante de gatos”, que “partilhou a sua vida
com uma sucessão de gatos invulgares.” Gautier, o
contemporâneo de Hugo e de Flaubert, autor de livros
célebres, como Fortunio, Mademoiselle
Maupin e Le Capitaine Fracasse, dedicou todo um
livro – La Ménagerie Intime – ao sedutor
felino. Nele nos diz que um dos seus gatos (aliás, gata) era de
cores vermelha e branca, se chamava Madame Théophile e
tinha o hábito expedito de lhe roubar bocados de comida “no
trajecto entre o prato e a boca”.
Teria muitas outras
histórias para contar, sem esquecer nunca a muito bizarra e sinistra
narrativa da morte do grande romancista Thomas Hardy e do
que sucedeu ao seu coração e ao seu gato, que tanto amara nos
últimos dias da sua longa vida. Podia fazer tudo isto e falar de
outros grandes escritores e de gatos hoje lembrados por lhes terem
pertencido. Mas não vou fazê-lo, hoje, por uma razão: desta vez, o
escritor sou eu e a gata será a que foi minha e há pouco faleceu –
a inesquecível Secotine. Como sou um escritor modesto, não
pretendo que ela seja lembrada por me ter pertencido, mas, pelo
contrário, aspiro a ser conhecido por lhe ter pertencido a ela.
Este pequeno milagre de vida, de afecto e de graça entrou na nossa vida, aqui no Estoril, no dia 8 de Julho de 2009. Tendo cessado de existir em 9 de Janeiro deste ano de 2011, esteve connosco, exactamente um ano e seis meses. Vinha da Macedónia, recolhida pela minha filha mais velha, que ali esteve alguns anos e no-la deixou, a caminho de Cuba. Era para ficar seis meses, mas ficou para sempre – um “para sempre” estupidamente curto. Quando os deuses nos dão muito, depressa no-lo tiram.
Chegada do aeroporto,
investigada a casa, os quartos, as salas, a cozinha, as casas de
banho, o terraço e arredores (para ulteriores minúcias e
excursões), a Secotine instalou-se e assumiu o comando.
Maltratada nas origens, por quadrúpedes, e sempre acarinhada por
bípedes, ela tinha uma confiança ilimitada em tudo que se movesse
com duas pernas. Da confiança, passava rapidamente a uma amizade
aquecida a alta temperatura, que se manifestava por uma desenvoltura
que logo nos conquistava. Surgia abruptamente do nada, saltava-nos
para o colo e disparava uma saraivada de marradinhas insistentes,
na cara, nos braços, no sovaco, aninhando-se depois ao colo, com
grande ênfase de proprietária. Tudo na casa lhe servia de
poiso – e passava a sê-lo, caso lhe conviesse. Movia-se com uma
elegância fácil, quase mozartiana, pelo meio de tudo quanto há de
mais frágil e quebrável, sem lhe tocar e sem nada estragar.
Era de um belíssimo e sedoso cinzento prateado e movia-se sempre a
grande velocidade. Era como se pressentisse que a vida lhe ia ser
curta e tivesse que fazer depressa o que tinha a fazer. Ela era a
elegância, a beleza, a surpresa, a confiança, a velocidade
personificadas. Chamava-lhe a minha neta peluda e sei agora como é
duro perder uma neta.
A Secotine detestava,
particularmente, ver-me “perder tempo”, concentrado na escrita ou
na leitura: quando isso acontecia, vinha, caminhando sorrateiramente,
com uma eleganciazinha coquette, e saltava-me para o colo, se
lia, ou para cima dos papéis, se escrevia. Dava-me, então,
marradinhas sedutoras e perguntava, aliciando-me: “Não achas
a minha conversa mais interessante do que isso?" Eu
dava-lhe quase sempre razão, porque uma das características da
Secotine (ela própria o dizia) era ter sempre razão.
Gostava de se aninhar à
janela que dava para a rua, ficando a “ver a banda
passar”. Quando a banda era pouca, a Secotine enfadava-se
e vinha-se embora. O mundo às vezes era pequeno e chato.
Era “petite”, airosa, de uma beleza esquisita e muito
viva. Estava sempre a ter ideias, que gostava de partilhar, mas eu,
às vezes, não tinha pedalada para tanta criatividade.
Agora fiquei sem ela e
gostava de ser realmente um grande escritor, para me tornar no
cronista que a Secotine merecia. Como é que se há-de
saber da grandeza dela, se o narrador não for, no mínimo, Fernão
Lopes? Seja como for, faço o que posso e dedico-lhe, com amor e
saudade, as medalhitas de sete sílabas que a seguir se
imprimem.
Estivemos com ela até ao
fim. Sofria muito e dirigia-nos apelos insistentes, tão insistentes
como os com que, na cozinha, costumava
pedir-nos “um petisquinho”. Fazíamos-lhe festas
para ela perceber que não éramos nós que lhe causávamos as dores.
Agradecia com os olhos, mas suplicava que acabássemos com aquilo.
Com a morte na alma, fizemos-lhe a vontade: foi o
último petisquinho que lhe demos.
SECOTINE
Tu eras a graça, a vida,
o golpe brusco de afecto,
elegância desmedida,
o súbito e dilecto
gesto de felino airoso.
Eras a velocidade
encarnada, o gostoso
ir à nossa intimidade,
sem pedir, sequer, licença:
como se tudo que há no mundo
fosse teu – tua presença
SECOTINE
Tu eras a graça, a vida,
o golpe brusco de afecto,
elegância desmedida,
o súbito e dilecto
gesto de felino airoso.
Eras a velocidade
encarnada, o gostoso
ir à nossa intimidade,
sem pedir, sequer, licença:
como se tudo que há no mundo
fosse teu – tua presença
vinha em nós até ao
fundo.
Tu eras a graça, a vida,
elegância desmedida.
Eugénio Lisboa
Tu eras a graça, a vida,
elegância desmedida.
Eugénio Lisboa
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