terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

«"Razão tem-la tu toda, Lobo das Estepes, mil vezes razão, mas mesmo assim tens de desaparecer. És demasiado exigente e esfomeado para um mundo como o de hoje, simples, cómodo e contente com tão pouco, é esse mundo que te vomita para fora, tens para ele uma dimensão a mais. Quem quer viver e disfrutar da sua vida nos nossos dias, não pode ser uma pessoa como tu ou eu. Para quem requer música em vez de barulheira, alegria em vez de prazer, alma em vez de dinheiro, trabalho puro em vez de activação, paixão pura em vez de brincadeira, este mundo lindíssimo não é pátria ... "

"Mas como é que tu vês isto: achas que pessoas como nós, pessoas com uma dimensão a mais, não podem viver aqui? Mas qual será a razão? Será um fenómeno exclusivamente dos nossos dias? Ou terá sido sempre assim?"

"Não sei. A bem da dignidade do mundo, quero crer que seja apenas do nosso tempo, que não passe duma doença, duma desgraça momentânea. Os líderes trabalham valorosa e vitoriosamente na próxima guerra, e nós, entretanto, vamos dançando o fox-trot, ganhando dinheiro e chupando bombons - numa época como a nossa, o mundo realmente não podia ter aspecto mais digno, mais razoável... Esperemos que houvesse outras épocas melhores, e que outras venham a haver, melhores também, mais ricas, mais vastas, mais profundas. Mas isso não nos adianta nem nos atrasa. E quem sabe se não foi sempre assim ... "

"Sempre assim como agora? Sempre um mundo só para os políticos, os escroques e os trapaceiros, os criados de café e os disfrutadores da vida, e sem ar para as pessoas?"

"Pois é, não sei, e ninguém sabe. Aliás pouco importa. Mas agora, meu amigo, veio-me à ideia o teu bem-amado, de que me tens falado algumas vezes e até lido cartas, o Mozart. Como estavam as coisas, no tempo dele? Quem é que governava o mundo, arrebanhava sempre o melhor, dava o tom e pontuava alguma coisa: Mozart ou os obreiros dos negócios, Mozart ou as pessoas simples e comezinhas de todos os dias? E como é que ele morreu e foi enterrado? Por isso creio que provavelmente terá sido sempre assim e sempre assim há-de ser, e aquilo a que na escola se chama "história universal" e que nos obrigam lá a aprender de cor, para nos instruirmos, com todos aqueles heróis e génios, aqueles feitos e sentimentos elevados - não passa de uma intrujice inventada pelos mestres para haver ensino e para que os miúdos andem ocupados com alguma coisa durante aqueles anos regulamentares. Sempre foi assim, e sempre assim há-de ser: o tempo e o mundo, o dinheiro e o poder, pertencem aos pequenos, aos comezinhos, e os outros, os verdadeiros homens, não possuem nada. Nada, excepto a morte".

"Nada a não ser isso?" "Sim, têm a eternidade".

"Queres dizer o nome, a glória para a posteridade?" "Não, Lobinho, não é a glória - então a glória tem algum valor? Acreditas por acaso que todos os homens verdadeiramente grandes, acabados, se tornaram célebres e ficaram para a posteridade? "

"Não, claro que não" .

"Portanto, não se trata de glória. A glória só existe para o ensino, é um assunto dos mestres de escola. Não é a glória, não! É aquilo a que eu chamo a eternidade. Os crentes chamam-lhe o reino de Deus. Ponho-me a pensar: nós, que somos todos homens, nós os mais exigentes, os nostálgicos, os que têm uma dimensão a mais, não conseguiríamos de todo viver se fora da atmosfera deste mundo não houvesse um outro ar para respirar, se para lá do tempo não existisse ainda a eternidade, e essa eternidade é o reino do verdadeiro. É a ela que pertencem a música de Mozart e os versos dos teus grandes poetas, a ela pertencem os santos, que fizeram milagres, sofreram e morreram como mártires e deram um grande exemplo aos homens. Mas à eternidade pertencem igualmente a imagem de toda a acção verdadeira, a força de todo o sentimento verdadeiro, mesmo que ninguém dê conta deles, os veja, os registe e os guarde para a posteridade. Na eternidade não há vindouros, só há contemporâneos" .

"Tens razão", disse eu.»
Hermann Hesse, O Lobo das Estepes

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