quinta-feira, 31 de março de 2011

Em certos dias bonitos fazia tanto frio, estávamos em tão larga comunicação com a rua que parecia que tinham desintegrado as paredes da casa e, sempre que passava o tramway, o seu timbre ressoava como uma faca de prata a bater numa casa de vidro. Mas era sobretudo em mim que ouvia, inebriado, um som novo emitido pelo violino interior. As suas cordas são apertadas ou distendidas por simples diferenças da temperatura ou da luz exteriores. No nosso ser, instrumento que a uniformidade do hábito tomou silencioso, o canto renasce desses desvios, dessas variações, fonte de toda a música: o tempo que faz em certos dias leva-nos logo a passar de uma nota para outra. Reencontramos a melodia esquecida cuja necessidade matemática poderíamos ter adivinhado e que, durante os primeiros instantes, cantamos sem reconhecer. Portas de comunicação há muito condenadas reabriam-se no meu cérebro. A vida de certas cidades, a alegria de certos passeios retomavam em mim o seu lugar. Estremecendo dos pés à cabeça em torno da corda vibrante, teria sacrificado a minha vida de antigamente e a minha vida futura, apagadas pela borracha do hábito, por esse estado tão particular.
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (V - A Prisioneira)

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