domingo, 17 de abril de 2011

Damos a nossa fortuna, a própria vida por um ser, e no entanto sabemos muito bem que, mais dez anos menos dez anos, recusaríamos a fortuna a esse ser e preferiríamos conservar a vida. Pois então o ser estaria desligado de nós, sozinho, isto é, seria nulo. O que nos prende aos seres são essas mil raízes, esses fios inúmeros que são as lembranças do serão da véspera, as esperanças da matinée do dia seguinte; é essa trama contínua de hábitos de que não nos podemos libertar. Assim como há avarentos que amealham por generosidade, somos uns pródigos que gastam por avareza, e é menos a um ser que sacrificamos a própria vida que a tudo o que ele pôde prender a si das nossas horas, dos nossos dias, daquilo ao lado do que a vida ainda não vivida, a vida relativamente futura, nos parece uma vida mais longínqua, mais despegada, menos íntima, menos nossa. O que seria necessário era libertarmo-nos desses laços que têm muito mais importância que ele, mas cujo efeito é criar em nós deveres momentâneos para com ele, deveres que fazem que não ousemos deixá-lo por medo de que nos julgue mal, ao passo que mais tarde ousaríamos fazê-lo, pois, desprendido de nós, ele já não seria nós, e a verdade é que só criamos deveres (ainda que, por uma contradição aparente, houvessem de conduzir ao suicídio) para connosco mesmos.
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (V - A Prisioneira)

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