terça-feira, 19 de abril de 2011

Ficámos lá muito tempo. O céu estava todo ele daquele azul radioso e um pouco pálido, como o viandante deitado num campo o vê por vezes acima da cabeça, mas tão liso, tão profundo, que se sente que o azul de que é feito foi empregado sem qualquer mistura, e com uma riqueza tão inesgotável que se poderia aprofundar cada vez mais a sua substância sem encontrar um átomo de outra coisa além desse mesmo azul. Eu pensava na minha avó, que apreciava, na arte humana e na natureza, a. grandeza, e que gostava de ver erguer-se nesse mesmo céu azul o campanário de Santo Hilário. De repente, tomei a sentir a nostalgia da minha liberdade perdida ao ouvir um ruído que a princípio não reconheci e que a minha avó também teria apreciado tanto. Era como que o zumbido de uma vespa. «Olha», disse-me Albertine, «é um aeroplano, vai muito alto, muito alto.» Eu olhava para todos os lados, mas, tal como o viandante deitado num campo, só via, sem qualquer mancha negra, a palidez intacta do azul sem mescla. No entanto, continuava a ouvir o zumbido das asas que de súbito entraram no meu campo de visão. Lá em cima, duas minúsculas asas pardas e brilhantes franziam o azul liso do céu inalterável. Conseguira finalmente relacionar o zumbido com a sua causa, com aquele insectozinho que trepidava lá em cima, sem dúvida a uns bons dois mil metros de altura; via-o sussurrar. Quando ainda não havia muito que as distâncias em terra estavam abreviadas pela velocidade como hoje, talvez o apito de um comboio que passasse a dois quilómetros fosse provido da beleza que agora, ainda por algum tempo, nos emociona no zumbido de um aeroplano a dois mil metros, à ideia de que as distâncias percorridas nessa viagem vertical são as mesmas que no solo e que, nesta nova direcção, em que as medidas nos parecem diferentes porque o acesso nos parecia impossível, um aeroplano a dois mil metros não está mais longe que um comboio a dois quilómetros, está até mais perto, pois o trajecto idêntico efectua-se num meio mais puro, sem separação entre o viajante e o seu ponto de partida, assim como no mar ou nas planícies, com tempo calmo, a esteira de um navio já longe ou a brisa de um único zéfiro riscam o oceano das vagas ou dos trigais.
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (V - A Prisioneira)

Sem comentários:

Enviar um comentário