terça-feira, 19 de abril de 2011

O que estava diante de mim fazia-me sentir tanta alegria como a Sonata o teria feito se eu não a conhecesse; por conseguinte, sendo igualmente belo, era diferente. Enquanto a sonata se abria com uma madrugada de lírios, campestre, dividindo a sua leve candura para se suspender no emaranhado ligeiro e no entanto consistente de um berço rústico de madressilvas sobre gerânios brancos, era sobre superfícies lisas e planas como as do mar que, numa manhã de tempestade, começava, no meio de um acre silêncio, num vazio infinito, a obra nova, e era num cor-de-rosa de aurora que, para se construir progressivamente diante de mim, esse universo desconhecido era arrancado ao silêncio e à noite. Aquele vermelho tão novo, tão ausente da terna, campestre e cândida sonata, tingia o céu inteiro, como a aurora, de uma esperança misteriosa. E já um canto varara o ar, um canto de sete notas, mas o mais desconhecido, o mais diferente que eu jamais imaginaria, ao mesmo tempo inefável e gritante, já não um arrulho de pomba como na Sonata, mas rasgando o ar, tão vivo como o matiz escarlate em que o começo estava mergulhado, algo como um místico canto do galo, um apelo inefável mas sobreagudo, da eterna manhã. A atmosfera fria, lavada pela chuva, eléctrica - de uma qualidade tão diferente, sujeita a pressões muito diversas, num mundo tão afastado do outro, virginal e guarnecido de vegetais, da sonata - mudava a todo o instante, apagando a promessa purpúrea da Aurora. Ao meio-dia, porém, numa luz escarlate e passageira, parecia realizar-se numa felicidade pesada, aldeã e quase rústica, onde a hesitação dos sinos ressoantes e desencadeados (semelhantes aos que incendiavam de calor a praça da igreja em Combray, e que Vinteuil, que os devia ter ouvido muitas vezes, talvez tivesse encontrado nesse momento na memória, como uma cor que se tem ao alcance da mão na paleta) parecia materializar a mais espessa alegria. Na verdade, esteticamente, este motivo não me agradava; achava-o quase feio, o ritmo arrastava-se tão penosamente pelo chão que se poderia imitar-lhe quase todo o essencial apenas com ruídos, batendo de certa maneira numa mesa com baquetas. Parecia-me que naquele ponto faltara inspiração a Vinteuil, e por conseguinte também me faltou um pouco de poder de atenção.
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (V - A Prisioneira)

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