terça-feira, 19 de abril de 2011

Por exemplo, aquela música parecia-me algo de mais verdadeiro que todos os livros conhecidos. Por instantes pensei que isso provinha do facto de que o que é sentido por nós na vida, não o sendo sob a forma de ideias, a sua tradução literária, ou seja, intelectual, dá conta dele, explica-o, analisa-o, mas não o recompõe como a música, na qual os sons parecem ganhar a inflexão do ser, reproduzir esse toque interior e extremo das sensações que é a parte que nos dá esse inebriamento específico que encontramos de tempos a tempos e que, quando dizemos: «Que bom tempo! Que lindo sol!», não damos a conhecer ao próximo, em quem o mesmo sol e o mesmo tempo despertam vibrações muito diferentes. Na música de Vinteuil havia assim dessas visões que é impossível exprimir e quase proibido contemplar, pois, quando, no momento de adormecer, recebemos a carícia do seu irreal encanto, nesse mesmo momento em que a razão já nos abandonou, os olhos fecham-se e, antes de termos tempo de conhecer, não apenas o inefável mas o invisível, adormecemos. Parecia-me, quando me abandonava a essa hipótese de a arte ser real, que a música pode exprimir até mais do que a simples alegria nervosa de um dia bonito ou de uma noite de ópio: um inebriamento mais real, mais fecundo, pelo menos tendo em conta o que eu pressentia. Mas não é possível que uma escultura, uma música que dá uma sensação que sentimos ser mais elevada, mais pura, mais verdadeira, não corresponda a uma certa realidade espiritual, ou então a vida não teria qualquer sentido. Assim, nada se parecia mais do que uma frase de Vinteuil com aquele prazer particular que eu sentira algumas vezes na vida, por exemplo, diante dos campanários de Martinville, de certas árvores de uma estrada de Balbec ou, simplesmente, no início desta obra, ao beber certa chávena de chá. Tal como essa chávena de chá, tantas sensações de luz, os rumores claros, as ruidosas cores que Vinteuil nos enviava do mundo onde compunha faziam passar diante da minha imaginação, com insistência, mas com demasiada rapidez para que ela pudesse apreendê-la, algo que eu poderia comparar com a seda perfumada de um gerânio, Somente, enquanto, na lembrança, esse vago pode ser, se não aprofundado, pelo menos precisado, graças a uma sinalização de circunstâncias que explicam por que motivo um certo sabor pôde lembrar-nos de sensações luminosas, como as sensações vagas transmitidas por Vinteuil, vinham, não de uma lembrança, mas de uma impressão (como a dos campanários de Martinville), seria necessário encontrar, para a fragrância de gerânio da sua música, não uma explicação material, mas o equivalente profundo, a festa desconhecida e colorida (de que as suas obras pareciam ser os fragmentos soltos, as lascas de bordos escarlates), o modo segundo o qual ele «ouvia» e projectava o universo fora de si. «Essa qualidade desconhecida de um mundo único, e que nenhum outro músico jamais nos dera a ver, talvez fosse nisso», dizia eu a Albertine, «que está a prova mais autêntica do génio, muito mais que no conteúdo da própria obra.» «Mesmo em literatura?», perguntava-me Albertine. «Mesmo em literatura.» E, voltando a pensar na monotonia das obras de Vinteuil, explicava a Albertine que os grandes literatos nunca fizeram senão uma única obra, nunca fizeram senão refractar através de meios diversos uma mesma beleza que trazem ao mundo. «Se não fosse tão tarde, minha querida», dizia-lhe eu, «mostrava-lhe isso em todos os grandes escritores que você lê enquanto eu durmo, mostrava-lhe a mesma identidade que existe em Vinteuil.
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (V - A Prisioneira)

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