quarta-feira, 27 de abril de 2011

Sim, há pouco, antes da chegada de Françoise, julgara que já não amava Albertine, julgara não deixar nada de lado, como um analista exacto; julgara conhecer bem o fundo do meu coração. Mas a nossa inteligência, por mais lúcida que seja, não pode perceber os elementos que o compõem e que permanecem insuspeitados enquanto, do estado volátil em que subsistem a maior parte do tempo, um fenómeno capaz de isolá-los não o fez passar a um começo de solidificação. Enganara-me ao pensar ver claramente no meu coração. Mas esse conhecimento, que as mais finas percepções do espírito me não teriam dado, acabava de me ser trazido, duro, brilhante, estranho, como um sal cristalizado, pela brusca reacção da dor. Estava tão habituado a ter Albertine ao pé de mim, e via subitamente um novo rosto do Hábito. Até então considerara-o sobretudo como um poder aniquilador que suprime a originalidade e até a consciência das percepções; agora via-o como uma divindade temível, tão agarrada a nós, o seu rosto insignificante tão incrustado no nosso coração que, se acaso se desprende e se afasta de nós, essa divindade que quase não distinguíamos inflige-nos sofrimentos mais terríveis que quaisquer outros, e é então tão cruel como a morte.

O mais urgente era ler a sua carta, já que queria descobrir os meios de fazê-la voltar. Sentia-os em meu poder, porque, sendo o futuro aquilo que ainda não existe senão no nosso pensamento, parece-nos ainda modificável pela intervenção in extremis da nossa vontade. Mas ao mesmo tempo lembrava-me de ter visto agirem sobre ele outras forças que não a minha, e contra as quais, mesmo que me fosse concedido mais tempo, eu nada poderia fazer. De que serve ainda não ter soado a hora, se nada podemos fazer em relação ao que nela vai acontecer? Quando Albertine estava em minha casa, eu estava decidido a tomar a iniciativa da nossa separação. Abri a carta de Albertine.(...)
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (VI - A Fugitiva)

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