sábado, 9 de abril de 2011

Tinha prometido a Albertine que, se não saísse com ela, começaria a trabalhar. Mas no dia seguinte, como se, aproveitando os nossos sonos, a casa tivesse milagrosamente viajado, acordava num tempo diferente, noutro clima. Não se trabalha no momento em que se desembarca num país novo, a cujas condições é preciso adaptar -se. Ora cada dia era para mim um país diferente. A minha própria preguiça, sob as formas novas de que se revestia, como haveria eu de reconhecê-la? Umas vezes, em dias irremediavelmente maus, como diziam, a simples residência na casa, situada no meio de uma chuva igual e contínua tinha a deslizante doçura, o silêncio calmante, todo o interesse de uma navegação; outra vez, era deixar rodar as sombras à minha volta como à volta do tronco de uma árvore. Outras vezes ainda, às primeiras badaladas de um convento vizinho, raros como as devotas matinais, mal branqueando o céu sombrio com as suas saraivadas incertas que o vento morno fundia e dispersava, eu discernira um desses dias tempestuosos, desordenados e suaves, em que os telhados, encharcados por um aguaceiro intermitente que uma aragem ou um raio logo secam, deixam, arrulhando, escorrer uma gota de chuva e, enquanto o vento não recomeça a rodopiar, alisam, ao sol momentâneo que as irisa, as suas ardósias peito-de-rola; um desses dias cheios de tantas mudanças de tempo, de incidentes aéreos, de trovoadas, que o preguiçoso não os tem por perdidos porque se interessou pela actividade que a atmosfera, agindo de certo modo em seu lugar, desenvolveu; dias semelhantes a esses tempos de motim ou de guerra que não parecem vazios ao aluno que falta à escola porque, nas imediações do Palácio da Justiça ou ao ler os jornais, tem a ilusão de encontrar nos acontecimentos que se produziram, à falta da tarefa que não realizou, um proveito para a sua inteligência e uma desculpa para a sua ociosidade; dias, enfim, com os quais se pode comparar aqueles em que se passa na nossa vida alguma crise excepcional e da qual aquele que nunca fez nada julga que vai tirar, se ela acabar bem, hábitos laboriosos: por exemplo, a manhã em que ele sai para um duelo que vai desenrolar-se em condições particularmente perigosas; aparece-lhe então de repente, no momento em que ela talvez lhe vá ser tirada, o valor de uma vida que poderia ter aproveitado para começar uma obra ou simplesmente para desfrutar prazeres, e de que não soube gozar nada. «Se eu pudesse não ser morto», diz ele para consigo, «como começaria a trabalhar nesse minuto, e também como me divertiria!» Com efeito, a vida ganhou de repente a seus olhos um valor maior porque ele põe na vida tudo o que lhe parece que ela pode dar, e não o pouco que lhe faz dar habitualmente. Vê-a segundo o seu desejo, e não tal como a sua experiência lhe ensinou que sabia tomá-la, isto é, tão medíocre. Nesse instante a vida encheu-se de labor, de viagens, de excursões às montanhas, de todas as belas coisas que ele imagina que o funesto desfecho do duelo poderá tornar impossíveis, sem pensar que já o eram antes de se falar em duelo, por causa dos maus hábitos que, mesmo sem duelo, teriam continuado. Volta a casa sem um ferimento sequer. Mas encontra os mesmos obstáculos aos prazeres, às excursões, às viagens, a tudo aquilo de que receara ser despojado para sempre pela morte; basta-lhe para isso a vida. Quanto ao trabalho - como as circunstâncias excepcionais têm por efeito exaltar o que existia previamente no homem, no laborioso o labor e no ocioso a preguiça -, tira umas férias.
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (V - A Prisioneira)

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