segunda-feira, 18 de abril de 2011

Uma vez mais o regressado apreciou a luz e o aroma, os ruídos e os cheiros da terra natal, toda a emocionante e satisfatória familiaridade de estar de novo em casa: o tumulto dos agricultores e dos habitantes da cidade no mercado de gado, as sombras dos castanheiros entrecortadas pelo sol que passava através da folhagem, o voo enlutado de negras e tardias borboletas de Outono junto aos muros da cidade, o borborejar das quatro bocas do fontanário do mercado, o aroma do vinho e ruidosas marteladas sobre madeira provenientes da entrada semicircular das caves onde trabalhava o mestre tanoeiro, nomes de vielas conhecidos, cada um deles densamente envolto num inquietante tropel de recordações. Através de todos os sentidos sorvia o desterrado com sofreguidão os múltiplos encantos do regressar a casa, do saber, do conhecer, do ainda se lembrar, da familiaridade com cada esquina de cada rua, com cada marco de pedra. Deambulando incansavelmente pelas ruas, passou toda a tarde a percorrer a cidade, escutou o amolador de facas junto ao rio, espiou o marceneiro através da janela da sua oficina, leu em placas e cartazes pintados de novo os velhos nomes de famílias suas conhecidas.
Mergulhou a mão na grande pia de pedra do fontanário do mercado, mas a sua sede apenas foi saciada no pequeno chafariz junto da abadia, cuja água passados todos aqueles anos ainda brotava misteriosamente do piso térreo de um edifício muito antigo e seguia arrulhando por lajes de pedra até à singular nascente banhada por uma luminosidade crepuscular. Permaneceu bastante tempo junto ao ribeiro, apoiado no parapeito de madeira e debruçado sobre a água que ia correndo, onde longas algas escuras se baloiçavam como cabelos compridos ao vento e onde os corpos estreitos, quietos e escuros dos peixes se destacavam do cascalho que rebolava. Encaminhou-se para o velho pontão, a meio do qual se sentou de pernas mergulhadas na água, para sentir, como nos tempos de rapaz, a corrente que exercia uma pressão constante sobre a pontezinha, flexível como se fosse uma coisa viva.
Sem pressa prosseguiu o passeio, tentando não se esquecer de nada: passou pela tília junto da igreja com o pequeno pedaço de relva em seu redor, pela represa junto à azenha, rio acima, o local onde outrora preferia tomar banho. Ficou parado frente à casinha onde em tempos o seu pai morara, apoiando as costas durante alguns instantes de ternura à velha porta, varreu com a vista o jardim, por sobre uma nova cerca de arame fria e insensível viu uma outra cultura disposta de modo diferente, mas os degraus de pedra moldados pela água das chuvas e o marmeleiro arredondado e robusto diante da porta eram ainda os mesmos. Aqui passara Knulp os seus melhores dias, antes ainda de ter querido sair da escola onde andava, aqui apreciara em tempos uma felicidade completa, uma satisfação sem consequências, alegrias sem amargura, ditosos Verões a roubar cerejas, a profunda e fugaz bem-aventurança de um jardineiro que cuida e escuta os segredos das suas flores: os seus queridos goivos-amarelos, as divertidas campainhas e os suaves e sedosos amores-perfeitos; as coelheiras, a sua pequena oficina e a construção de papagaios; condutas de água talhadas em miolo de sabugueiro e rodas de azenha feitas de cordas entrelaçadas com pás aproveitadas de telhas. Não havia telhado cujos gatos não conhecesse, pomar cujos frutos não houvesse já provado, árvore que não tivesse subido e em cuja copa não houvesse tido um ninho verde de estimação. Este pedaço de mundo fora seu, havia-lhe sido tão familiar e tão querido, aqui cada ramo e cada sebe tinha para si significado, encerrava em si histórias por contar, cada aguaceiro e cada nevão falara-lhe de perto, aqui o ar e a terra tinham ganho vida nos seus sonhos e desejos, haviam correspondido às suas expectativas, haviam podido respirar a vida que os animava.
Hermann Hesse, Knulp

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