sábado, 14 de maio de 2011

Entretanto, relia a carta e sentia-me, apesar de tudo, decepcionado com o pouco que uma carta contém de uma pessoa. Sem dúvida que os caracteres traçados exprimem o nosso pensamento, como também o fazem as nossas feições, é sempre em presença de um pensamento que nos achamos. Mas, ainda assim, na pessoa, o pensamento só nos é revelado depois de se ter difundido nessa corola do rosto desabrochada como um nenúfar. Apesar de tudo, isso modifica-a muito. E talvez uma das causas das nossas perpétuas decepções em amor esteja nesses perpétuos desvios por força dos quais, à expectativa da criatura ideal a quem amamos cada encontro nos traga uma pessoa de carne e osso que já tão pouco contém do nosso sonho. E depois, quando reclamamos alguma coisa dessa pessoa, recebemos dela uma carta onde resta muito pouco da própria pessoa, tal como nas letras da álgebra já não resta a determinação dos algarismos da aritmética, os quais por sua vez já não contêm as qualidades dos frutos ou das flores adicionadas. E, contudo, «amor», «pessoa amada», as suas cartas, são porventura, afinal de contas, traduções (por muito insatisfatório que seja passar de uma para a outra) da mesma realidade, pois a carta só nos parece insuficiente quando a lemos, mas suamos frio enquanto não chega, e ela basta para acalmar a nossa angústia, ou até mesmo para encher com os seus sinaizinhos negros o nosso desejo que sente que, apesar de tudo, ali existe apenas a equivalência de uma palavra, de um sorriso, de um beijo, e não essas mesmas coisas.
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (VI - A Fugitiva)

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