sábado, 14 de maio de 2011

Para que a morte de Albertine pudesse suprimir os meus sofrimentos, teria sido preciso que o choque a tivesse matado não só na Touraine, mas em mim. Nunca fora mais viva. Para entrar em nós, uma criatura é obrigada a tomar a forma, a moldar-se ao quadro do tempo; só nos aparecendo em minutos sucessivos, nunca pôde dar-nos de si senão um aspecto de cada vez, e fornecer-nos uma única fotografia. Grande fraqueza, sem dúvida, para uma criatura, consistir numa simples colecção de momentos; grande força, também; depende da memória, e a memória de um momento não está instruída sobre tudo o que depois se passou; esse momento que ela registou perdura ainda, ainda vive, e com ele o ser que aí se perfilava. E depois, esse esboroamento não faz apenas viver a morta, multiplica-a. Para me consolar, não seria uma, mas inúmeras Albertine que eu teria de esquecer. Depois de ter conseguido suportar o desgosto de ter perdido esta, tinha de recomeçar com outra, com outras cem.
Então a minha vida modificou-se completamente. Aquilo que, e não por causa de Albertine, mas paralelamente a ela, constituíra a sua doçura, quando estava só, era justamente, ao apelo de momentos idênticos, o perpétuo renascimento de momentos antigos. Pelo rumor da chuva era-me restituído o perfume dos lilases de Combray; pela mobilidade do sol na varanda, os pombos dos Campos Elísios; pelo ensurdecimento dos ruídos no calor da manhã, a frescura das cerejas: o desejo de Veneza ou da Bretanha pelo rumor do vento e pelo regresso da Páscoa. O Verão chegava, os dias eram longos, estava calor. Era o tempo em que de manhã cedo alunos e professores vão para os
jardins públicos preparar os últimos exames à sombra das árvores, para recolherem a única gota de frescura vertida de um céu menos incendiado que sob o ardor do dia, mas já também esterilmente puro. Do meu quarto às escuras, com um poder de evocação igual ao de outrora, mas que já não me causava senão sofrimento, sentia que lá fora, na densidade do ar, o Sol-poente punha na verticalidade das casas, das igrejas, uma pincelada fulva. E se, ao voltar, Françoise desarranjava sem querer as pregas das cortinas, eu abafava um grito ante o rasgão que acabava de fazer em mim aquele raio de sol antigo que me fizera parecer bela a fachada nova de Bricqueville l' Orgueilleuse quando Albertine me dissera: «Foi restaurada.»
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (VI - A Fugitiva)

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