quarta-feira, 25 de maio de 2011

A partir de certa idade, as nossas recordações estão de tal modo entrecruzadas umas com as outras que a coisa em que pensamos, o livro que lemos quase não têm importância. Pusemos algo de nós mesmos em toda a parte, tudo é fecundo, tudo é perigoso, e podemos fazer descobertas tão preciosas num anúncio de sabonete como nos Pensamentos de Pascal.
(...) Levantando a ponta do véu do hábito (o hábito embrutecedor que ao longo da nossa vida nos oculta a pouco e pouco quase todo o universo e que, numa noite profunda, sob a sua imutável etiqueta, substitui os mais perigosos ou os mais inebriantes venenos da vida por algo de anódino que não proporciona delícias), elas vinham até mim como no primeiro dia, com a fresca e penetrante novidade de uma estação que reaparece, de uma mudança na rotina das nossas horas, que, também no domínio dos prazeres, se entramos num carro no primeiro belo dia de Primavera ou saímos de casa ao nascer do Sol, nos levam a reparar nas nossas acções insignificantes com uma exaltação lúcida que faz prevalecer esse minuto intenso sobre a totalidade dos dias anteriores. Via-me à saída da recepção da princesa de Guermantes esperando que Albertine chegasse. Os dias antigos recobrem a pouco e pouco os que os precederam, e ficam por sua vez sepultados sob os que se lhes seguem. Mas cada dia antigo ficou depositado em nós como numa biblioteca imensa, onde há dos mais belos livros antigos, um exemplar que sem dúvida ninguém irá pedir jamais. No entanto, basta que esse dia antigo, atravessando a translucidez das épocas seguintes, venha à superfície e se estenda sobre nós cobrindo-nos totalmente, para que logo, por um momento, os nomes retomem o seu antigo significado, os seres o seu antigo rosto, e nós a nossa alma de então, e sintamos, com um sofrimento vago mas que se tomou suportável e não há-de durar muito, os problemas há muito tornados insolúveis e que tanto nos angustiavam então. O nosso «eu» é feito da sobreposição dos nossos estados sucessivos. Mas essa sobreposição não é imutável como a estratificação de uma montanha. Levantamentos contínuos fazem afluir à superfície camadas antigas.
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (VI - A Fugitiva) 

Sem comentários:

Enviar um comentário