domingo, 5 de junho de 2011

Abri o Figaro. Que maçada! O primeiro artigo tinha justamente o mesmo título do que eu mandara e não fora publicado. Mas não era só o mesmo título, eis algumas palavras absolutamente iguais. Era de mais. Ia enviar um protesto. Mas não eram algumas palavras, era tudo, era a minha assinatura ... Era o meu artigo que, finalmente, fora publicado! Mas o meu pensamento que, talvez já nessa época, começara a envelhecer e a fatigar-se um pouco, continuou ainda por um instante a raciocinar como se não tivesse compreendido que era o meu artigo, como os velhos que são obrigados a continuar até ao fim um movimento começado, ainda que se tenha tomado inútil, ainda que um obstáculo imprevisto, diante do qual seria preciso recuar imediatamente, o tenha tornado perigoso. Considerei depois o pão espiritual que um jornal é, ainda quente e húmido da impressão recente e do nevoeiro matinal em que é distribuído, desde madrugada, às criadas que o levam ao patrão com o café com leite, pão miraculoso, multiplicável, que é ao mesmo tempo um e dez mil, e que permanece o mesmo para cada qual penetrando ao mesmo tempo, inúmero, em todas as casas.
O que eu tinha na mão não era um determinado exemplar do jornal, era um qualquer em dez mil; não era apenas o que foi escrito para mim, era o que foi escrito por mim e lido por todos. Para apreciar exactamente o fenómeno que se produz neste momento nas outras casas, tenho de ler este artigo, não como autor, mas como um dos leitores do jornal; não era somente o que eu escrevera, era o símbolo da sua encarnação em tantos espíritos. Assim, para o ler, era preciso que deixasse por um momento de ser o autor, que fosse um qualquer entre os leitores do jornal. Mas, antes de tudo, uma primeira inquietação. O leitor desprevenido veria aquele artigo?
(...)
E confortando a desconfiança de mim mesmo com essas dez mil aprovações que me apoiavam, a leitura que eu fazia nesse momento inspirava-me tanto o sentimento da minha força e a esperança no talento como me inspirara desconfiança quando o que eu escrevera se dirigia somente a mim. Via à mesma hora, para tantas pessoas, o meu pensamento - ou mesmo, à falta do meu pensamento, para os que não conseguissem compreendê-lo, a repetição do meu nome e como que uma evocação embelezada da minha pessoa - brilhar sobre elas, colorir-lhes o pensamento numa aurora que me infundia mais força e mais alegria triunfante que a aurora infinita que ao mesmo tempo se mostrava rósea em todas as janelas. Via Bloch, os Guermantes, Legrandin, Andrée, o senhor X ... retirarem de cada frase as imagens que ela encerra, no preciso momento em que tentava ser um leitor qualquer, e em que lia como autor. Mas, para que a criatura impossível que procuro tornar-me reúna todos os contrários que possam até ser-me mais favoráveis, se leio como autor, julgo-me como leitor, sem nenhuma das exigências que pode ter para com um escrito quem o confronta com o ideal que nele quis exprimir. Aquelas páginas que, quando as escrevi, eram tão pálidas em comparação com o meu pensamento, tão complicadas e opacas em comparação com a minha visão harmoniosa e transparente, tão cheias de lacunas que não conseguira preencher, que a sua leitura era para mim um sofrimento, nada haviam feito senão agudizar em mim o sentimento da minha impotência e da minha incurável falta de talento. Mas agora, esforçando-me por ser leitor, descarrego sobre os outros o doloroso dever de me julgar, consigo pelo menos, ao ler o que realizara, fazer tábua rasa do que quisera realizar. Lia o artigo, esforçando-me por me convencer de que era de outro. Então, todas as minhas imagens, todas as minhas reflexões, todos os meus epítetos tomados em si mesmos, e sem a lembrança do fracasso que representavam para os meus «eus» objectivos, encantavam-me com o seu brilho, o seu imprevisto, a sua profundidade. E quando sentia um desfalecimento muito grande, refugiando-me na alma de um qualquer leitor maravilhado, dizia para comigo: «Ora, como é que um leitor pode aperceber-se disto? Falta aqui qualquer coisa, é possível. Mas, apre!, se não hão-de estar satisfeitos. Há aqui bastantes coisas bonitas, mais do que estão habituados.» Assim, mal terminei esta reconfortante leitura, eu, que não tivera coragem para reler o meu manuscrito, desejei recomeçá-la imediatamente, pois não há nada como um velho artigo nosso de que possamos dizer que «quando o lemos, podemos relê-lo».
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (VI - A Fugitiva)  

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