domingo, 31 de julho de 2011

E como nos novos espaços, ainda não percorridos, que se estendiam diante de mim, já não haveria mais vestígios do meu amor por Albertine do que houvera, nos tempos perdidos que acabava de atravessar, do meu amor pela minha avó - oferecendo uma sucessão de períodos sob os quais, após um certo intervalo, nada do que sustentava o precedente subsistia no que se lhe seguia, a minha vida surgiu-me como algo de tão desprovido do suporte de um «eu» individual idêntico e permanente, algo de tão inútil no futuro como ao longo do passado, algo que a morte poderia terminar aqui ou ali, sem de modo algum a concluir, como esses cursos de História da França que em retórica são suspensos indefinidamente, segundo a fantasia dos programas ou dos professores, na revolução de 1830, na de 1848, ou no fim do Segundo Império.
Talvez a fadiga e a tristeza que então senti resultassem não tanto de ter amado inutilmente o que já esquecia como de começar a sentir-me bem com outras pessoas vivas, pura gente de sociedade, simples amigos dos Guermantes, tão pouco interessantes em si mesmos. Consolava-me porventura mais facilmente verificar que aquela a quem amara já não era, ao fim de certo tempo, mais do que uma pálida recordação do que por reencontrar em mim essa vã actividade que nos faz perder tempo a atapetar a nossa vida de uma vegetação humana vivaz mas parasita, que também se converterá em nada depois de morta, que já é estranha a tudo quanto conhecemos, e à qual procura todavia agradar a nossa senilidade tagarela, melancólica e vaidosa. Surgira em mim o novo ser que suportaria facilmente viver sem Albertine, uma vez que conseguira falar dela em casa da senhora de Guermantes com palavras afligidas, e sem sofrimento profundo. O possível advento desses novos «eus», que deveriam usar um nome diferente do anterior, sempre me assustara, por serem indiferentes ao que eu amava: outrora, a propósito de Gilberte, quando o seu pai me dizia que se eu fosse viver na Oceania nunca mais quereria voltar; muito recentemente, quando lera com tamanho aperto no coração as memórias de um escritor medíocre que, separado pela vida de uma mulher que adorara em jovem, a reencontrara já velho, sem prazer, sem vontade de tomar a vê-la. Ora, pelo contrário, quem me trazia, juntamente com o esquecimento, uma supressão quase completa do sofrimento, uma possibilidade de bem-estar, era o ser temido e benfazejo, que não era senão um desses «eus» de reserva, mantidos pelo destino para nós e que, sem dar mais ouvidos às nossas preces que um médico esclarecido e tanto mais autoritário, substitui, contra a nossa vontade e com uma intervenção oportuna, o «eu» verdadeiramente muito ferido. Substituição que, de resto, realiza de tempos a tempos, como o desgaste e a recomposição dos tecidos, mas a que só prestamos atenção se o antigo continha uma grande dor, um corpo estranho e agressivo, que nos espantamos de já não encontrar, maravilhados por se ter tomado outro, um outro para quem o sofrimento do seu predecessor não é mais que o sofrimento alheio, aquele de que se pode falar com compaixão porque não se sente. E até nos é indiferente termos passado por tantos sofrimentos, pois só confusamente nos lembramos de os ter sofrido. É possível que, de igual modo, os nossos pesadelos sejam pavorosos à noite. Mas, ao despertar, somos outra pessoa que não se importa com o facto de que aquela a quem sucede tenha tido de fugir diante dos assassinos enquanto dormia.
Sem dúvida que esse «eu» ainda mantinha certo contacto com o antigo, tal como um amigo, indiferente a um luto, não deixa de falar dele às pessoas presentes com a devida tristeza, e de vez em quando vai ao quarto onde o viúvo, que o encarregou de receber as visitas, continua a soluçar. Eu ainda soluçava quando por um momento tornava a ser o antigo amigo de Albertine. Mas era para um personagem novo que tendia a passar inteiramente. Não é porque os outros estão mortos que a nossa afeição por eles diminui, é porque nós próprios morremos. Albertine nada tinha que censurar ao seu amigo. Aquele que lhe usurpava o nome não era senão o seu herdeiro. Só podemos ser fiéis àquilo que recordamos, e só recordamos aquilo que conhecemos. O meu novo «eu», ao mesmo tempo que crescia à sombra do antigo, ouvira-o muitas vezes falar de Albertine; através dele, através das narrativas que dele recolhia, julgava conhecê-la, ela era-lhe simpática, ele amava-a, mas era apenas uma ternura em segunda mão.
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (VI - A Fugitiva)

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