domingo, 25 de setembro de 2011

Mas, por vezes, é no momento em que tudo nos parece perdido que chega o aviso que pode salvar-nos; batemos a todas as portas que não levam a nada, e a única por onde podemos entrar e que teríamos procurado em vão durante cem anos, esbarramos nela sem disso nos apercebermos e ela abre-se. Enquanto ruminava os tristes pensamentos de que há pouco falava, entrara no pátio do palacete de Guermantes, e, na minha distracção, não vira uma carruagem que avançava; ao grito do motorista, só tive tempo de me afastar rapidamente, e recuei tanto que bati sem querer nas pedras mal acertadas da calçada, em frente de uma cocheira. Mas, no momento em que, ao reequilibrar-me, pousei o pé numa pedra um pouco menos alta que a precedente, todo o meu desânimo desapareceu perante a mesma felicidade que em diversas épocas da minha vida me haviam causado a visão de árvores que eu julgara reconhecer num passeio de carruagem nos arredores de Balbec, a visão dos campanários de Martinville, o sabor de uma madalena mergulhada numa infusão, tantas outras sensações de que já falei e que as últimas obras de Vinteuil me tinham parecido sintetizar. Tal como no momento em que saboreava a madalena, toda a inquietação com o futuro, toda a dúvida intelectual se haviam dissipado. As que há pouco me assaltavam quanto à realidade dos meus dotes literários, e até quanto à realidade da literatura, tinham desaparecido como que por encanto. Sem que tivesse feito qualquer raciocínio novo, ou encontrado algum argumento decisivo, as dificuldades há pouco insolúveis tinham perdido toda a importância. Mas desta vez estava decidido a não me resignar a ignorar porquê, como fizera no dia em que saboreara uma madalena mergulhada numa infusão.
A felicidade que acabava de sentir era de facto a mesma que sentira ao comer a madalena e de cujas causas profundas adiara então a busca. A diferença, puramente material, estava nas imagens evocadas; um azul profundo ofuscava-me, impressões de frescura, de luz deslumbrante rodopiavam junto de mim e, no meu desejo de as apanhar, sem ousar mover-me como ao saborear a madalena, procurando fazer chegar até mim o que ela me lembrava, eu continuava, a ponto de fazer rir a multidão inumerável dos motoristas, a titubear como há pouco, com um pé na pedra mais alta e outro pé na mais baixa. De cada vez que repetia, mesmo materialmente, o mesmo passo, revelava-se-me inútil; mas se conseguia (...) encontrar o que sentira quando assim pousara os pés, de novo a visão deslumbrante e indistinta me roçava como se me tivesse dito: «Agarra-me à passagem se tiveres força, e vê se resolves o enigma de felicidade que te proponho». E reconheci-a quase imediatamente, era Veneza, acerca da qual os meus esforços para a descrever e os pretensos instantâneos captados pela minha memória nunca me haviam dito coisa alguma, e que a sensação que outrora sentira em duas lajes desiguais do baptistério de São Marcos me devolvera com todas as sensações aliadas nesse dia àquela sensação, e que tinham ficado à espera, na sua fila, de onde um brusco acaso as fizera sair imperiosamente, na série dos dias esquecidos. De igual modo o sabor da pequena madalena me fizera lembrar Combray. Mas por que razão as imagens de Combray e de Veneza me haviam num momento e noutro causado uma alegria semelhante a uma certeza, e suficiente, sem outras provas, para me tomar a morte indiferente? 
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (VII  - O Tempo Redescoberto

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