A felicidade que acabava de sentir era de facto a mesma que sentira ao comer a madalena e de cujas causas profundas adiara então a busca. A diferença, puramente material, estava nas imagens evocadas; um azul profundo ofuscava-me, impressões de frescura, de luz deslumbrante rodopiavam junto de mim e, no meu desejo de as apanhar, sem ousar mover-me como ao saborear a madalena, procurando fazer chegar até mim o que ela me lembrava, eu continuava, a ponto de fazer rir a multidão inumerável dos motoristas, a titubear como há pouco, com um pé na pedra mais alta e outro pé na mais baixa. De cada vez que repetia, mesmo materialmente, o mesmo passo, revelava-se-me inútil; mas se conseguia (...) encontrar o que sentira quando assim pousara os pés, de novo a visão deslumbrante e indistinta me roçava como se me tivesse dito: «Agarra-me à passagem se tiveres força, e vê se resolves o enigma de felicidade que te proponho». E reconheci-a quase imediatamente, era Veneza, acerca da qual os meus esforços para a descrever e os pretensos instantâneos captados pela minha memória nunca me haviam dito coisa alguma, e que a sensação que outrora sentira em duas lajes desiguais do baptistério de São Marcos me devolvera com todas as sensações aliadas nesse dia àquela sensação, e que tinham ficado à espera, na sua fila, de onde um brusco acaso as fizera sair imperiosamente, na série dos dias esquecidos. De igual modo o sabor da pequena madalena me fizera lembrar Combray. Mas por que razão as imagens de Combray e de Veneza me haviam num momento e noutro causado uma alegria semelhante a uma certeza, e suficiente, sem outras provas, para me tomar a morte indiferente?
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (VII - O Tempo Redescoberto
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