quarta-feira, 21 de setembro de 2011

(…) a minha incapacidade de olhar e de escutar, (…) não era total. Havia em mim uma personagem que sabia ver mais ou menos, mas era uma personagem intermitente, que só ganhava vida quando se manifestava alguma essência geral, comum a várias coisas, que era o seu alimento e a sua alegria. Então a personagem via e ouvia, mas somente a uma certa profundidade, de modo que a observação não lucrava com isso. Como um geómetra que, despojando as coisas das suas qualidades sensíveis, vê apenas o seu substrato linear, aquilo que as pessoas contavam escapava-me, pois o que me interessava não era o que elas queriam dizer, mas a maneira como o diziam, enquanto reveladora do seu carácter ou dos seus ridículos; ou, antes, o que fora sempre a finalidade particularmente visada da minha busca, porque provocava em mim um prazer específico, fora um objecto, o ponto comum a um ser e a outro. Só quando o vislumbrava, o meu espírito - até então sonolento, mesmo sob a actividade aparente da minha conversa, cuja animação mascarava perante os outros um total entorpecimento espiritual - lançava-se de súbito e alegremente à caça, mas o que então perseguia - por exemplo, a identidade do salão Verdurin em diversos lugares e tempos - situava-se a uma semiprofundidade, para além da própria aparência, numa zona um pouco mais retirada. (...) Por muito que eu jantasse fora, não via os convivas, porque, quando julgava olhar para eles, estava a radiografá-los. Disso resultava que, reunindo todas as observações que conseguira fazer num jantar sobre os convivas, o desenho das linhas por mim traçadas formava um conjunto de leis psicológicas em que o interesse próprio do discurso de um conviva quase não tinha lugar. Mas seria que isso retirava todo o mérito aos meus retratos, uma vez que eu não os apresentava como tais? Se um retrato, no domínio da pintura, põe em evidência certas verdades relativas ao volume, à luz, ao movimento, será por isso que ele é necessariamente inferior a certo retrato da mesma pessoa, nada parecido com ele, e no qual mil pormenores que foram omitidos no primeiro serão minuciosamente relatados, segundo retrato esse do qual poderemos concluir que o modelo era encantador ao passo que no primeiro o julgáramos feio, o que pode ter uma importância documental e até histórica, mas não é necessariamente uma verdade da arte? Depois, a minha frivolidade, quando não estava só, tornava-me desejoso de agradar, mais desejoso de entreter tagarelando que de me instruir ouvindo, a menos que tivesse saído para fazer perguntas acerca de alguma questão artística ou de alguma suspeita de ciúmes que anteriormente me ocupara o espírito. Mas era incapaz de ver aquilo por que uma qualquer leitura me não tivesse despertado o desejo, aquilo cujo esboço eu próprio não tivesse previamente desenhado para depois o confrontar com a realidade. Quantas vezes, (...) fui incapaz de prestar atenção a coisas ou a pessoas que mais tarde, uma vez que a sua imagem me era apresentada a sós por um artista, percorreria léguas, arriscaria a vida para encontrar! Então a minha imaginação soltara-se, começara a pintar. E daquilo que no ano precedente me fizera bocejar, dizia-me com angústia, contemplando-o antecipadamente e desejando-o: «Será mesmo impossível vê-lo? Quanto não daria eu por isso!»
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (VII  - O Tempo Redescoberto)
 
 

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