sábado, 29 de outubro de 2011

Aliás, como num livro as individualidades (humanas ou não) são feitas de impressões numerosas que, recebidas de muitas raparigas, de muitas igrejas, de muitas sonatas, servem para compor uma única sonata, uma única igreja, uma única rapariga, não faria eu o meu livro da mesma maneira que Françoise fazia aquela carne estufada que o senhor de Norpois tanto apreciava, na qual tantos pedaços de carne acrescentados e escolhidos enriqueciam a geleia?
(...)
Sim, a ideia do Tempo que acabava de formar dizia que era tempo de me consagrar a essa obra. Era mais que tempo, mas, o que justificava a ansiedade que me assaltara ao entrar no salão, quando os rostos mascarados me haviam dado a noção do tempo perdido, será que ainda ia a tempo, e estaria ainda em condições de o fazer? O espírito tem as suas paisagens, que só lhe é dado contemplar por algum tempo. Eu vivera como um pintor subindo por um caminho sobranceiro a um lago, cuja vista lhe é ocultada por uma cortina de rochas e árvores. Avista-o por uma brecha, tem-no todo à sua frente, pega nos pincéis. Mas já vai caindo a noite, em que não se pode pintar, e sobre a qual o dia não despontará. Primeiro, como nada estava começado, podia sentir-me inquieto - embora julgando que, dada a minha idade, ainda tinha alguns anos pela frente -, pois a minha hora podia soar dentro de minutos. Com efeito, tinha de partir do facto de que possuía um corpo, isto é, de que estava perpetuamente ameaçado por um duplo perigo, exterior e interior. E só falava assim por uma questão de comodidade da linguagem. Pois o perigo interior, como o de hemorragia cerebral, é também exterior, por ser do corpo. E ter um corpo é a grande ameaça para o espírito, já que a vida humana e pensante, de que sem dúvida se deve dizer, não tanto que é um miraculoso aperfeiçoamento da vida animal e física, como que é uma imperfeição ainda tão rudimentar como a existência comum dos protozoários em polipeiros, como o corpo da baleia, etc., na organização da vida espiritual. O corpo encerra o espírito numa fortaleza; em breve a fortaleza é cercada por todos os lados, e no fim o espírito tem de render-se.  
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (VII  - O Tempo Redescoberto)

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