domingo, 9 de outubro de 2011

Percebi contudo, passado um momento, depois de ter pensado nestas ressurreição da memória, que, de outro modo, houvera por vezes impressões obscuras que, e já em Combray do lado de Guermantes, tinham solicitado o meu pensamento, à maneira daquelas reminiscências, mas escondendo, não uma sensação de outrora, mas uma verdade nova, uma imagem preciosa que eu tentava descobrir através de esforços do mesmo género dos que fazemos para nos recordarmos de alguma coisa, como se as nossas mais belas ideias fossem como que músicas que nos ocorressem sem que alguma vez as tivéssemos ouvido, e nos esforçássemos por escutá-las e transcrevê-las. Lembrei-me com agrado, porque isso me mostrava que já era o mesmo nessa altura e porque marcava um traço fundamental da minha natureza, e também com tristeza, pensando que desde aí nunca mais progredira, que já em Combray fixava com atenção no meu espírito alguma imagem que me forçara a contemplá-la, uma nuvem, um triângulo, um campanário, uma flor, uma pedra, sentindo que havia porventura sob esses sinais algo de muito diferente, que eu devia tentar descobrir, um pensamento que eles traduziam à maneira desses caracteres hieroglíficos que se suporia representarem apenas objectos materiais. Sem dúvida que a decifração era difícil, mas só ela permitia ler a verdade. Pois as verdades que a inteligência apreende directamente, às claras, no mundo de luz plena, têm algo de menos profundo, de menos necessário do que as que a vida nos comunicou sem as termos procurado, numa impressão, material porque entrou através dos nossos sentidos, mas da qual podemos extrair o espírito. Em suma, tanto num caso como no outro, quer se tratasse de impressões como a que me transmitira a visão dos campanários de Martinville, quer de reminiscências como a da desigualdade dos dois degraus ou o gosto da madalena, era preciso tentar interpretar as sensações como sinais de outras tantas leis e ideias, procurando pensar, ou seja, fazer sair da penumbra o que sentira, convertê-lo num equivalente espiritual. Ora, esse meio, que me parecia o único, que seria se não fazer uma obra de arte? E já as consequências se me comprimiam no espírito; pois quer se tratasse de reminiscências do género do ruído do garfo ou do gosto da madalena, ou dessas verdades escritas por figuras cujo sentido procurava na minha cabeça, onde campanários e ervas sem nome compunham um alfarrábio complicado e florido, a sua característica de base consistia em que eu não era livre para as escolher, eram-me dadas tal e qual. E sentia que devia ser essa a marca da sua autenticidade. Não procurara as duas pedras desiguais do pátio onde tropeçara. Mas, justamente, a maneira fortuita, inevitável, coma sensação fora encontrada, controlava a verdade do passado que ressuscitava, das imagens que desencadeava, pois sentimos o seu esforço para subir até à luz, sentimos a alegria do real reencontrado. (...) As ideias formadas pela inteligência pura só têm uma verdade lógica, uma verdade possível; a sua eleição é arbitrária. O livro de caracteres figurados, não traçados por nós; é o nosso único livro. Não que essas ideias que formamos não possam ser justas logicamente, mas não sabemos se são verdadeiras. Só a impressão, por muito frágil que pareça a sua matéria, por muito imperceptível que seja a sua marca, é um critério de verdade, e por isso só ela merece ser apreendida pelo espírito, pois só ela é capaz, quando se trata de extrair dela essa verdade, de o conduzir a uma maior perfeição e de lhe dar uma pura alegria. A impressão é para o escritor o que a experimentação é para o sábio, com a diferença de que, no sábio, o trabalho da inteligência antecede, e no escritor vem depois. O que não tivemos de decifrar, de esclarecer com o nosso esforço pessoal, o que era claro antes de nós, não é nosso. Só vem de nós o que tiramos da obscuridade que há em nós e que os outros não conhecem! Só vem de nós o que tiramos da obscuridade que existe em nós e que os outros desconhecem E como a arte recompõe exactamente a vida, em torno dessas verdades que atingimos em nós mesmos flutua uma atmosfera de poesia, a doçura de um mistério, que não é mais que a penumbra que atravessámos.
Assim, já chegara à conclusão de que não somos livres perante a obra de arte, de que não a fazemos como queremos, mas que, preexistindo a nós, devemos descobri-la, por ser necessária e oculta, e como faríamos para uma lei da natureza. Mas essa descoberta que a arte podia permitir-nos fazer não será, no fundo, a do que nos deveria ser mais precioso, e que habitualmente nos permanece desconhecido para sempre, isto é, a nossa verdadeira vida, a realidade tal como a sentimos e que difere tanto daquilo que julgamos que transbordamos de felicidade quando um acaso nos traz a recordação verdadeira?
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (VII  - O Tempo Redescoberto)

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