sábado, 29 de outubro de 2011

Se o que agora tanto tencionava salientar era essa noção do tempo incorporado, dos anos passados mas inseparáveis de nós, era porque nesse preciso momento, em casa do príncipe de Guermantes, ouvi de novo o som dos passos dos meus pais acompanhando o senhor Swann, o tilintar sonoro, ferruginoso, impossível de calar, gritante e fresco da pequena campainha que anunciava que o senhor Swann tinha finalmente partido e que a mamã ia subir, foi a eles mesmos que tornei a ouvir, embora situados tão longe no passado. Então, pensando em todos os acontecimentos que se situavam forçosamente entre o instante em que os ouvira e a matinée Guermantes, assustou-me pensar que era essa mesma campainha que ainda tilintava dentro de mim, sem que pudesse mudar alguma coisa à estridência do badalo, já que, não me lembrando muito bem de como se extinguiam, para os reaprender, para os escutar bem, tive de fazer um esforço para não continuar a ouvir o som das conversas que as máscaras mantinham à minha volta. Para tentar ouvi-la mais de perto, era em mim mesmo que eu tinha de tornar a descer. Então era porque esse tilintar ainda ali estava, e também, entre ele e o momento presente, todo aquele passado indefinidamente transcorrido, que eu não sabia que trazia comigo. Quando tilintara, eu já existia, e depois, para tornar a ouvir esse tilintar, era preciso que não tivesse havido descontinuidade, que eu não tivesse, nem por um instante, cessado de existir, de pensar, de ter consciência de mim, pois esse instante antigo ainda estava agarrado a mim, eu ainda podia voltar a ele, bastando para tal descer mais profundamente em mim. E é por conterem assim as horas do passado que os corpos humanos podem causar tanto mal aos que amam, por conterem tantas lembranças de alegrias e desejos já apagados para eles, mas tão cruéis para aquele que contempla e prolonga na ordem do tempo o querido corpo de que é cioso, tão cioso que lhe deseja a destruição. Pois, após a morte, o Tempo retira-se do corpo, e as recordações, tão indiferentes, tão empalidecidas, daquela que já não existe são apagadas, e em breve o serão daquele que ainda torturam, mas em quem acabarão por perecer quando já não as alimentar o desejo de um corpo vivo.
Experimentava uma sensação de fadiga e de pavor ao sentir, não só que todo esse tempo tão longo fora vivido, pensado, segregado por mim sem uma interrupção, que era a minha vida, que era eu mesmo, mas também que devia incessantemente mantê-lo preso a mim, que ele me suportava, a mim, jungido ao seu pico vertiginoso, que eu não me podia mover sem o deslocar. A data em que ouvia o som da campainha do jardim de Combray, tão distante e contudo tão interior, era um ponto de referência nessa dimensão enorme que eu não sabia que possuía. Sentia a vertigem de ver abaixo de mim, e contudo em mim, como se tivesse léguas de altura, tantos anos.
Acabava de compreender porque é que o duque de Guermantes, que, vendo-o sentado numa cadeira, me admirava por ter envelhecido tão pouco, embora ele tivesse muitos mais anos por baixo de si que eu, mal se levantara e quisera manter-se de pé, vacilara nas pernas bambas como as desses velhos arcebispos que de sólido só têm a cruz metálica e para junto dos quais acorrem jovens seminaristas garbosos, e avançara a tremer como uma folha, no cimo pouco praticável dos oitenta e três anos, como se os homens estivessem montados em andas vivas, que crescem sem parar, por vezes mais altas que campanários, e que acabam por lhes tomar o andar difícil e perigoso, e de onde de súbito caíssem. Assustava-me que as minhas fossem já tão altas sob os meus passos, não me parecia que viesse ainda a ter forças para manter por muito tempo preso a mim esse passado que já descia tão longe. Pelo menos, se me fossem concedidas pelo tempo suficiente para realizar a minha obra, não deixaria de descrever primeiro os homens (ainda que isso os fizesse parecerem seres monstruosos) ocupando um lugar tão considerável, comparado com o lugar tão restrito que lhes é reservado no espaço, um lugar de facto desmedidamente prolongado - pois tocam simultaneamente, como gigantes mergulhados nos anos, épocas tão distantes, entre as quais vieram colocar-se tantos dias - no Tempo.
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (VII  - O Tempo Redescoberto)

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