segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

As Nuvens III

A natureza incompreensível e esbanjadora havia reunido em mim dois dons contraditórios: uma força física incomum e uma não menor repulsa pelo trabalho. O pai envidava todos os esforços para fazer de mim um filho útil e um colaborador, mas eu esquivava-me com todas as trapaças ao trabalho que me era imposto; mesmo no liceu, não havia herói da antiguidade pelo qual eu sentisse tanta comiseração como por Hércules, por ele ter sido forçado àqueles famosos trabalhos árduos. Entretanto, eu não conhecia nada de mais belo que vaguear ociosamente por sobre as rochas e veigas, ou junto à água.
Montanhas, lago, tempestade e Sol, eram esses os meus amigos, que me falavam e educavam, e durante longo tempo me foram mais caros e mais profundamente conhecidos que qualquer pessoa ou destino humano. Os meus eleitos, todavia, os que eu preferia ao lago espelhado e aos tristes ventos quentes e rochas ensolaradas, eram as nuvens.
Mostrai-me por esse vasto mundo o homem que melhor conheça ou mais ame as nuvens que eu! Ou mostrai-me a coisa deste mundo que seja mais bela que as nuvens! Elas são brinquedo e consolo do olhar, são bênção e dom de Deus, são a cólera e o poder da morte. Elas são delicadas, suaves e calmas como as almas dos recém-nascidos, são belas, ricas e dispensadoras como anjos bons, são negras, irrevogáveis e fatais como os mensageiros da morte. Elas pairam prateadas em ténues camadas, vogam ridentes, brancas com bordos doirados, elas param para repousar com cores amarelas, vermelhas e azuladas. Elas avançam soturnas e lentas como assassinos, galopam desenfreadas, de cabeça erguida, como cavaleiros loucos, pendem tristes e sonhadoras em pálidas alturas como melancólicos eremitas. Elas têm a forma de ilhas maravilhosas e de anjos a abençoar, assemelham-se a mãos ameaçadoras, velas adejando, grous em migração. Pairam entre o céu divino e a pobre terra, quais belas metáforas da nostalgia humana, pertencendo a ambos - sonhos da terra, em que esta roça a sua alma conspurcada no céu puro. Elas são a imagem eterna de todo o caminhar, da busca, da ânsia e da saudade do lar. E assim como elas pendem entre a terra e o céu, apreensivas, ansiosas e obstinadas, assim pendem apreensivas, ansiosas e obstinadas as almas dos homens, entre o tempo e a eternidade.
Oh, as nuvens, belas, pairando, sem repouso! Eu era uma criança ignorante, e amava-as, olhava-as e não sabia que também eu atravessaria a vida como uma nuvem - caminhante, por toda a parte um estranho, pairando entre o tempo e a eternidade. Desde a infância que elas foram para mim queridas amigas e irmãs. Eu não consigo passar pelas ruas que logo nos não acenemos, cumprimentemos e, por um momento, fitemos olhos nos olhos. E também não esqueci o que então aprendi com elas: as suas formas, as suas cores, os seus traços, os seus jogos, danças de roda, bailes e repousos, e as suas singulares histórias a um tempo terrenas e celestes.
Hermann Hesse, Peter Camenzind

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