quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Há igrejas de compridas agulhas de pedra que perfuram os céus, e dessas recolhemos uma impressão ardente, um desejo de rigor e de paz - é o segredo do gótico; os claustros, em cujos capitéis floriu o lis ou o acanto desenrolou as suas folhas, comunicam-nos algo de melancólico e correcto - é o segredo do românico. O Escorial possui também um segredo. Sentados debaixo dos plátanos onde trilam as cigarras, olhando para a fachada meridional, seca e construída de branca pedra que se fez cor de pergaminho, não podemos deixar de murmurar para dentro de nós: «quem sou eu?», e depois ainda: «quem era este homem?» Quando uma presença se nos revela duma maneira tão directa como agora Filipe II através desse convento, não estamos longe de tocar a realidade da nossa própria presença. Perguntamos: «quem era esse homem?", mas, antes, a suspeita do nosso próprio eu nos infundira uma espécie de angústia e começara já a primeira perplexidade da alma. "Quem sou eu?". O Escorial está diante de nós, sóbrio, pesado, com majestade fria e fictícia serenidade. No lago nadam as carpas vermelhas, o sol devora a larga fachada, faz brilhar a fosca ardósia dos telhados. Tudo tem um ar como que furtado ao tempo - as crianças que brincam, um varredor que dormita de pé junto da sua vassoura, os bancos altos de pedra rugosa, os visitantes que, em chusma, se aproximam com as sus kodaks e o aspecto devastado pela fadiga, o calor, o pó. O segredo do Escorial está nessa imobilidade em que nos surpreendemos, porque não é possível nem pensar, nem agir, diante desse estranho catafalco dos Áustrias que é sobretudo um retrato extraordinário de um homem só. 
Agustina Bessa-Luís, Embaixada a Calígula

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