quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Não é a nossa época propícia aos relatos de viagens, por banal que nos parece mudar de lugar com a rapidez do som e atravessar fronteiras de olhos fechados, tendo ao lado um mapa apenas consultado e uns óculos de lentes verdes. Mas se mudar de lugar é uma coisa cada vez mais possível em condições de dia para dia mais indiscutíveis, viajar, propriamente, vai-se tornando raro. O que é viajar? Começa uma pessoa por temer o conflito com a sua rotina, e isso é já atmosfera moral duma viagem. Depois vai cedendo à curiosidade, ao doce pastoreio da sua própria alma pelos campos desconhecidos - e já penetra a sensação dum país que até aí lhe era oculto e que era para si destituído de tudo que não fosse simples geografia.
A viagem é a intimidade do importuno. Tudo o que não preferimos em quaisquer outras circunstâncias de fixação prolongada - uma paisagem, as criaturas, um acontecimento - é-nos oferecido para que o tomemos com esse amor espontâneo que não se pode evitar por que vive da surpresa em que se comprometeu. Muita gente muda de lugar, passa de um a outro continente, retém na memória factos sobrevindos em diversas latitudes. Mas a viagem, com o seu mistério e a sua intimação à consciência, com as suas alegrias que nascem inexplicavelmente dum golpe de vento na poeira sobre uma ponte, duma sensação de vida isolada e profunda quando atravessamos uma terra estrangeira - ah, essa viagem poucos a podem experimentar!

Agustina Bessa-Luís, Embaixada a Calígula

Sem comentários:

Enviar um comentário