domingo, 1 de janeiro de 2012

«Ora, quando eu era miúdo, tinha uma paixão por mapas. Passava horas a olhar para a América do Sul, ou para a África, ou para a Austrália, e perdia-me no arrebatamento de todas as glórias da exploração. Naquele tempo havia muitos espaços em branco no mundo, e quando eu via num mapa um que parecia especialmente convidativo (mas todos eles parecem), punha-lhe o dedo em cima e dizia: Quando for crescido, vou lá. Lembro-me de que o Polo Norte era um desses lugares. Bem, ainda lá não fui e agora já não tentarei. A atracção passou. Outros lugares estavam espalhados pelo Equador e por todas as latitudes de ambos os hemisférios. Estive em alguns deles e ... bem, não falemos nisso. Mas ainda havia um - o maior, o mais em branco, digamos assim - pelo qual sentia um desejo forte.
«É verdade que, entretanto, deixara de ser um espaço em branco. Enchera-se, desde a minha infância, de rios, lagos e nomes. Tinha deixado de ser um espaço em branco de delicioso mistério, uma extensão branca para despertar os sonhos de glória de um rapaz. Tornara-se um lugar de trevas. Mas havia nele um rio, em especial, um grande e imponente rio, que se via no mapa e lembrava uma imensa serpente desenrolada, com a cabeça no mar, o corpo sinuoso em descanso ao longo de uma enorme região e a cauda perdida nas profundezas da terra. E quando olhei para esse mapa numa montra, ele hipnotizou-me como uma serpente hipnotizaria um pássaro, um passarinho pateta. Depois lembrei-me de que havia uma grande empresa, uma Companhia, que comerciava nesse rio. Com a breca, pensei para comigo, eles não podem comerciar sem usar algum tipo de barco naquela vastidão de água doce - barcos a vapor! Por que não tentava obter o comando de um deles? Continuei a percorrer a Fleet Street, mas não conseguia afastar essa ideia do pensamento. A serpente encantara-me.
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«O cheiro a lodo, a lodo primordial, meu Deus, entrava-me pelas narinas, a imensa quietude da floresta primordial estava diante dos meus olhos, havia manchas brilhantes na enseada negra. A Lua espalhara sobre tudo uma fina camada de prata: sobre a erva luxuriante, sobre o lodo, sobre a muralha de vegetação emaranhada que se erguia mais alto do que a muralha de um templo, sobre o grande rio que entrevia, através de uma fresta escura, cintilando, cintilando, enquanto corria, largo, sem um murmúrio. Tudo isto era grandioso, expectante, mudo (...) enquanto o homem tagarelava a respeito de si mesmo. Perguntei-me se a quietude na face daquela imensidão que nos olhava significaria um apelo ou uma ameaça. Quem éramos nós que ali nos extraviáramos? Seríamos capazes de nos haver com aquela coisa muda, ou seria ela que se haveria connosco? Tinha consciência de quanto era grande, excessivamente grande aquela coisa que não falava e talvez fosse também surda. O que havia ali? Via chegar de lá um pouco de marfim e ouvira dizer que Mr. Kurtz estava lá. Deus sabe quanto ouvira falar a esse respeito! No entanto, essas conversas não traziam consigo nenhuma imagem, não mais do que se me tivessem dito que existia ali um anjo ou um demónio. Acreditava do mesmo modo que podemos acreditar que há habitantes no planeta Marte.
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«O amanhecer era anunciado pela descida de um silêncio frio; os lenhadores dormiam, com as fogueiras amodorradas; o estalar de um galho bastava para estremecermos, num sobressalto. Éramos viandantes numa terra pré-histórica, numa terra que apresentava o aspecto de um planeta desconhecido. Podíamos ter-nos imaginado os primeiros homens a tomarem posse de uma herança amaldiçoada, só possível de subjugar à custa de imensa angústia e excessivo labor. Mas, de súbito, quando nos afadigávamos para contornar uma curva, tínhamos um vislumbre de paredes de junco, de pontiagudos telhados de erva, havia uma explosão de gritos, um torvelinho de pernas negras, um mar de mãos a bater palmas, de pés a bater no chão, de corpos oscilantes, de olhos revirados, sob a abóbada da pesada e imóvel folhagem. O vapor arrastava-se, vagaroso, na fronteira de um negro e incompreensível delírio. O homem pré-histórico amaldiçoava-nos, suplicava-nos, dava-nos as boas-vindas? Quem poderia dizê-lo? Estávamos excluídos da compreensão do que nos cercava, passávamos, deslizando como fantasmas, surpreendidos e secretamente assustados, como homens mentalmente sãos perante uma insurreição desvairada num manicómio. Não podíamos compreender, porque estávamos muito longe e não nos lembrávamos, porque viajávamos na noite dos primeiros tempos, desses tempos volvidos quase sem deixar um vestígio - nem quaisquer memórias.
«A terra parecia não ser deste mundo. Estamos habituados a ver a forma agrilhoada de um monstro vencido, mas ali ... ali víamos uma coisa monstruosa e livre. Era sobrenatural, e os homens eram ... Não, não eram inumanos. Compreendem, isso era o pior de tudo, essa suspeita de que eles não eram inumanos. Tomávamos lentamente consciência dela. Eles urravam, e saltavam, e giravam, e faziam caretas horrorosas; mas o que nos emocionava era precisamente o pensamento da sua humanidade - como a nossa -, o pensamento do nosso remoto parentesco com aquele tumulto selvagem e desenfreado. Hediondo. Sim, era de facto hediondo; mas quem é suficientemente homem não pode deixar de admitir, para consigo mesmo, uma leve reacção, ainda que muito ténue, à terrível franqueza daquele ruído, uma vaga suspeita da existência, nele, de um significado que nós - nós, tão distantes da noite dos primeiros tempos - podíamos compreender. E porque não? A mente do homem é capaz de tudo: porque ela contém tudo, todo o passado, assim como todo o futuro. O que havia ali, afinal? Alegria, medo, mágoa, afecto, valentia, raiva - quem poderia sabê-lo? -, mas havia certamente verdade, sim, havia verdade despida do seu manto de tempo. O tolo pode abrir a boca, embasbacado, e tremer; o homem sabe, sabe e pode olhar sem pestanejar. Mas para isso precisa de ser pelo menos tão homem como eles, os da margem. (...).»

Joseph Conrad, O Coração das Trevas

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