quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Porém, o futuro da Europa não é coisa apenas de alguns; seria triste e arrepiante que assim fosse, seria contrário à obra divina. Um homem passa a existência a percorrer uma rua, apenas uma longa rua onde criou amigos, onde praticou delitos, onde deixou recordações. Não é quase ninguém, entrega sapatos consertados ao domicílio, recomenda a sua lotaria, sabe o nome das criadas e fala-lhes da sua aldeia com uma espécie de lógica insistente, como se provasse a sua identidade. Dá mil voltas para trocar uma nota e regressa um tanto ufano com as moedas contadas na mão. É um homem necessário e quase não se vê, não se pressente, não se olha no rosto. Um dia desaparece; desaparece aquele distriibuidor de jornais que tremia nas manhãs frias e que batia à porta, no dia de receber, com duas pancadas desastradas, como alguém que esgotou o tempo da cortesia e da melifluidade. E o nosso coração estremece ligeiramente ao depararmos com o seu substituto que de facto não podemos ver sem que uma leve angústia nos penetre, e sem que pensemos que o outro era afinal único, importante, real como o pão a que já não achamos sabor, mas que é o nosso alimento fundamental. Que Europa representam umas dezenas de letrados, de conferencistas, de profetas acabrunhados, de poetas sensíveis demais? O meu alfaiate, a quem devo algum dinheiro e que oculta dos meus amigos esta dívida, é também um europeu; e aqueles lavradores de Lourmarin que, ao cair da noite, se sentam à entrada do bar, fumando os seus gauloises, são europeus. Porque não ouvi-los, porque não pedir-lhes uma opinião? Eles saberiam, tenho a certeza, dizer alguma coisa capaz de nos interessar - mas que linguagem usar para nos dirigirmos a eles, como havemos de exprimir-nos? Sem dúvida que não é com uma provisão de termos técnicos sobre a situação do Ocidente que vamos falar-lhes. Como então? «Bom dia» ou «boa noite» serve apenas para os abordarmos com a solenidade infinita dos nossos costumes de gente culta. Mas depois? Os seus olhares tímidos e um tanto irónicos confundem-nos, e não podemos estar muito tempo sem dizer nada, porque o ridículo nos cobre da cabeça aos pés. Mas nada temos para dizer. Recuamos outra vez com o nosso salvo-conduto de «boa noite» ou «bom dia». Que seres representamos, pois que o convívio dos homens nos é vedado, pois que não temos já emoções rápidas, riso fresco, palavras vivas e alma que nos conduza ao ser alheio, e nos movemos com a lentidão das espécies demasiado desenvolvidas para sobreviver? Contudo, eles eram europeus.
Agustina Bessa-Luís, Embaixada a Calígula

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