domingo, 22 de janeiro de 2012

Sobre a praia de Narbonne, ouve-se o vento sibilar baixinho, derreando os sarçais que crescem na rocha roída de salitre. A paz dessa tarde já iluminada pela lua parece uma coisa um tanto irreal e que nos consola não sabemos de que passos perdidos, de que viagens esgotadas. Não vemos barcos nem velas. Apenas esse azul severo do mar entre as falésias, o selvagem sossego da paisagem da meseta onde alguma gaivota paira lançando o seu grito gemebundo. A solidão é ali um alimento de alma; toma-nos a mão e conduz-nos levemente sobre o abismo, sobre essa escarpa onde fazem os ninhos e voam sem cessar pequenas aves migradoras. Não há livros que ocorram, palavras que nos pousem nos lábios; vemos apenas o céu ainda branco, a terra em que rasteja o vento, as flores que despontam da pedra e em que as vespas mergulham o dia inteiro. Onde estão os momentos lúdicos que fazem intervalo num drama de Shakespeare, essas confidências de gente rude e sanguinária que repara de súbito na temperatura do ar, na presença das andorinhas sob as cornijas dum castelo? São como estes momentos em que detivemos a nossa viagem, não para fotografar um rio, não para fixar um rosto dum cavaleiro, não para pensar na obra dum homem já morto - mas para existir em aliança com o vento, as aranhas que se escapam entre as pedras, as sementes que amadurecem na sua anónima infloração. A vida seria insuportável sem momentos assim, pequeno entreacto em que não entram os guerreiros, em que não acodem as ambições, em que não passeiam os presságios. É apenas uma confissão do ser ao ser de todas as coisas vivas ou inanimadas.
Agustina Bessa-Luís, Embaixada a Calígula 

Sem comentários:

Enviar um comentário