sábado, 28 de janeiro de 2012

Tudo na Itália, e sobretudo a paisagem, é dum gosto inexcedível, dum requinte que chega a diminuir o próprio homem. Os largos prados do Pó, com os seus intervalados bosques transparentes, dum verde rutilante e metálico, os arrozais que a chuva submergiu, são duma harmonia tão feliz que nos ocorre se a arte italiana não é a espécie de ocupação natural numa terra cuja maior riqueza é a sua inspiração. Não se nota um desencontro, não se observa um pormenor que nos fira, naqueles campos desertos e, contudo, consentidos duma múltipla presença, nas extensões cobertas de acácias, de álamos, de carvalhas cujos troncos claros são como braços de prata. (...)
É um país onde as nuances são a própria obra de arte, onde tudo possui um elemento de surpresa que vai direito aos sentidos e onde tudo é, ao mesmo tempo, mortal e profundo. Quando viajamos por Itália compreendemos que a morte é uma coisa real, defendida da especulação humana, que é uma virtude. Perante os seus palácios secretos e onde o pó deixou uma espécie de notícia precavida das idades, perante os seus jardins magníficos e que marcam tão logicamente a vontade do seu criador, perante as ruínas que o vento gasta continuamente, e as pinturas que na obscura nave duma catedral guardam a sua cor que nenhuma luz pode revelar mais, nós sentimos uma espécie de saudade, de vazio, de isolamento - e a morte ganha uma grandeza e um sublime que não nos apavora, que nos ilumina talvez.
No trajecto que percorremos já, entre Ventimiglia e os Alpes Marítimos, deparámos com estranhas vilas construídas como fortificações contra a face da montanha, e onde não nos é difícil imaginar a pátria desses monges de olhar ardente e doce que deixam ver sob a orla do hábito os pés gotejantes de sangue. São povoados magníficos, que parecem ir desabar sobre a nossa cabeça ao primeiro trovão, ao primeiro golpe de vento; a sua cor velha abre-se ao sol como uma polpa um pouco apodrecida e que o ar foi deteriorando. Construídos à força de braços, inacessíveis, sobre as ribeiras pedregosas, eles falam duma época em que as invasões eram como afluentes humanos correndo para as capitais. Os lombardos, de origem bárbara, deviam assolar as províncias e criar o pavor entre as populações cristãs; até Carlos Magno, a situação de toda essa região alpina teria que ser um caso de vida ou de morte. Assim o dizem os altos lugares fronteiriços que nesta manhã de 14 de Julho apresentam um aspecto ríspido e elegante, com os restos dos seus conventos e as fachadas das suas casas como alcáçares.
Agustina Bessa-Luís, Embaixada a Calígula 

Sem comentários:

Enviar um comentário