segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Voltamos a Narbonne pela estrada encantadora, agora submersa nas trevas. Os grilos cantam; nos canais, entre hostes imóveis de canas ou salgueiros, ouve-se o baque das rãs que mergulham. É uma noite dessas que parecem infinitas, com uma palidez persistente para os lados do poente, com um segredo, uma pausa onde tremem as almas dos habitantes que acabaram de jantar e olham dos terraços a sua própria sombra reflectida em frente.
À noite, Narbonne agrada-nos muito mais do que pela manhã. Os seus passeios estão desertos, paramos diante dos cartazes dum cinema fechado, e, à luz parca dos candeeiros, deciframos o nome dos intérpretes e as suas atitudes sobranceiras e apaixonadas. Neste vaguear sob a lívida luz coada pelos plátanos, encontramos pouca gente; há uma reserva provinciana nos que passam fazendo tinir as chaves que preparam para abrir a porta de casa. Descobre-se uma torre de catedral, dá-se a volta à cidade para a localizar, vemos afinal que ela estava na rua mais próxima. As altas árvores de copas tosquiadas faziam um rumor estranho, um tanto romanesco, porque o vento as sacudia e as penetrava. Mas há outro ruído que é preciso decifrar - a queda da água no rio que, dum verde de azeite, atravessa a cidade. Caminhamos à sorte, tropeçando nos passeios rebentados, tomados pela magnificência que é ignorarmos tudo a respeito de alguma coisa; essa pequena capital romana enche-nos de respeito e de alegria um pouco demolidora também. Como é esplêndido entrar assim de noite numa terra desconhecida, rodear o seu jardim, como se dentro dele houvesse o leão de Tartarin rugindo sob o céu da próxima Provença! Rimo-nos com essa sinceridade resoluta que não exprime senão malícia e candura ao mesmo tempo, e que é o riso peculiar do estrangeiro.
Agustina Bessa-Luís, Embaixada a Calígula 

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