É de noite quando entramos em Arezzo; o Hotel Chiave d'Oro abriu as altas persianas, e, nas suas escadas maceradas, há como que um deslize permanente de passos leves. A Igreja de São Francisco está apagada no escuro, com a sua face de muralha e o seu pequeno alpendre rústico. A cor é rica, queimada, duma distinção soberba. E toda a cidade possui esta gravidade nobre, o cunho duma extrema pureza arquitectural, e o sentimento da pedra - um sentimento que estremece em todos os rostos de mansões, em todas as quinas de brasões, em todas as cercaduras de velhas janelas, nas lajes das ruas empinadas, na serenidade nocturna dos palácios. A beleza de Arezzo é quase um dom das sombras que mergulham o ângulo duma praça numa espécie de vivo segredo e que dão ao nosso caminho um imperceptível terror e um espanto amorável.
A casa de Petrarca, reconstruída, aparenta uma leve mistificação na sua alma recente, mas aquele largo da catedral, onde suspira a nossa respiração no ar tranquilo, ou a romana Campanile, cuja torre parece atrair-nos como um dente que perfura o céu - tudo é magnífico e doce, solitário e cheio de confissão. Arezzo foi um burgo etrusco que, através dos tempos, teve alto significado; foi cidade de gente engenhosa, a ponto de os seus espíritos se tornarem lendários e os aretinos presumirem de maliciosos. Encontraremos em Assis um belo fresco de Giotto em que São Silvestre, por ordem do Poverello, expulsa os demónios de Arezzo. Eles fogem em debandada, sobrevoando as torres vermelhas envolvidas pela muralha e diante da qual o chão abre largas fendas, decerto para absorver o maligno tropel. E no nono fosso do Inferno, entre os sarnentos, encontra-se aquele que «foi de Arezzo» e prometeu ensinar a voar a um senhor de Siena, homem curioso e de pouco senso; o próprio Dante diz: «Houve jamais gente tão vã como a gente de Siena? Não, palavra, nem mesmo a francesa!» Seja como for, a cidade agrada-me e a sua placidez medieval é apenas interrompida pelo ruído das lambretas que rolam vertiginosamente pelas calçadas, transportando um casal jovem. São as novas cavalgadas, que têm algo de bruxedo nessa agilidade subtil com que as raparigas se equilibram, cruzando as pernas nuas e sem tocar sequer o ombro do seu companheiro com as pontas dos dedos. Não se vê mais ninguém, as portas, com as suas aldrabas de ferro admiravelmente batido, estão fechadas; nas fachadas, com argolas incrustadas destinadas aos archotes, os brasões assinalam a linhagem dos seus passados donos e as alianças que mantiveram. Há uma iluminação discreta que incide sobre o palácio da comuna, sobre as arcadas da Pieve di Santa Maria. E, de súbito, as lambretas irrompem pela rua inclinada, o seu zumbido enche os ares, abatem-se como moscardos pela cidade, desaparecem em bando como vieram, deixando no ar uma vibração estrídula e que só lentamente se apaga no cérebro. Arezzo, luarenta e com os seus monumentos tocados por um raio de luz, tem algo de muito fluido e quase demoníaco que nos incita a corrê-la interminavelmente, voltando aos mesmos lugares, descendo e subindo as mesmas ruas, com uma espécie de danação gracejadora e um tanto inquietante.
Agustina Bessa-Luís, Embaixada a Calígula
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