quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Era ver os tesouros, admirar as cidades, conhecer as civilizações, o que nós desejávamos? Não, não era. Eu penso que não. Queria, em vez de vaguear pelas capitais embandeiradas, viver num tempo limpo e sem exasperação, em que eu pudesse ler os versos de Neruda sem me ocultar dos que têm o coração alvo demais; ou que pudesse entrar numa igreja sem que me chamem reaccionária. Porque é que uma rã, de ventre redondo e húmido, canta livremente nos arrozais e não lhe dizem: «Qual é o teu partido, o teu credo, o teu clã?». Eu não quero ser outra coisa senão esse pequeno verde, sem gramática demasiado oficial, sem copiosos sentimentos além das estações, o medo das águias imorredoiras ou das cobras meio adormecidas. Estou em Portugal, as mesetas sombrias e onde cheira a fumo parecem mover-se com o vento duro e triste. Vão-me fazer perguntas, meu Deus, vão-me fazer perguntas! Com o silêncio de pedra, os olhos baixos, vão-me fazer perguntas. Direi que encontrei amigos e coisas belas, que os países são invejáveis com o seu pão delicado, as suas gentes frias, os portos onde vemos sempre um homem esfarrapado ,voltando as costas ao mar. Se eu trouxesse um frasquinho azul rescendente ainda de velho veneno florentino, então como me receberiam com orgulho! Talvez me convidassem para fazer uma conferência sobre os sabores dos pêssegos da Úmbria; e um auditório selecto, entre o qual brilharia o fatal amigo da arte e o coleccionador, o jovem que promete, a rapariga ceramista e o poeta compilador de ritmos, haveria de experimentar uma estranha exultação. Excelente momento esse em que a bela sociedade escuta alguma coisa que a lisonjeia porque a nada a intima e a nada a pode converter! O mundo é sublime de tentação, de insignificâncias mercadejáveis, de silêncio ruidoso, atroador. É preciso ter cuidado, fechar os olhos que empalidecem de cólera, selar a boca em que formigam descréditos. E palavras, um campo de palavras que crescem e se escapam como os elos dum verme branco e mole, estilhaçado e impossível de destruir.
Estrelas dum verde irisado e claro tremem nos altos. O vento treme, tremem as sarças sobre as quais as libélulas morreram ao fim do dia. É amargo partir, é amargo voltar. Nesta treva onde se movem ventos silenciosos, eu conheço a terra mais do que nunca estranha e amada, bloco de esquecida falésia, rasto perdido onde, como dedos de sal, aponta um humanismo esperançado, porém triste. Neste planalto onde vêm morrer as vozes dos lugares, das casas fumacentas, das encruzilhadas em que lentamente passam os gados, surpreende-se de súbito uma espécie de idílio desgraçado com o tempo, o mundo, as próprias estrelas esverdeadas. Um idílio patético e interminável, um amar entre zumbidos e barafunda, um estar sozinho no coração de toda a gente. É assim a vida e a morte. Um regresso de parte nenhuma, um encontro com a contradição. Então saúdo a terra escura, o vento escuro, a solidão e o medo. São campos meus, recintos onde se pode procurar, trilhos quebrados de que nos desviámos, tentativas penosas, novas lágrimas. Assim eu volto, não de acordo, não afeita à simpatia, não destinada às coisas resolvidas, não quase igual a quem quer que seja, não portadora de boas novas. Se há uma crise, é de incorruptíveis, se há uma decadência, é de criaturas que não convertam a comunicação numa burocracia; se há uma moléstia, é a de fazer da própria paz um sectarismo.
Agustina Bessa-Luís, Embaixada a Calígula

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