domingo, 4 de março de 2012

Conheci Maria Helena Vieira da Silva em 1962, em Lisboa. Havia algo de natural na sua celebridade. Não como as vedetas, que se afeiçoam e servem a tudo o que as ilumina; mas uma grandeza sem ilusões, que é inútil comunicar aos outros e que até se observa vulgarmente como ingratidão. Um andar em uníssono com o mundo, sem contudo estar de acordo com ele. Nenhuma extravagância, nenhuma leviandade no seu humor. Antes um fino espírito de quem não acha a terra bastante vasta para conter à distância os maldizentes daqueles que executam um trabalho sério.
Perante Vieira da Silva, mais uma vez observei que, nas pessoas em relação permanente com uma força interior que tudo penetra e absorve, existe uma certa aura cinzenta que as torna apagadas para o vulgar. Nenhuma retórica no semblante, nenhuma debilidade simpática ou grandeza de efeitos mágicos. Assim, o silêncio e a solidão como que envolvem essas pessoas, acorrentando-as à elementar opinião de que elas não reflectem o génio. É hoje muito comum, a título de se apostrofar os ídolos, pretender-se descobrir a improbabilidade da criatura de excepção através da sua dimensão mais aparente. É desse modo que uma amante de Goethe tem hoje mais auditório do que a própria obra do poeta. E a origem da, fortuna do pai de Chateaubriand é propalada na intenção de manchar a sua alma; alma onde o estado de felicidade era de facto impuro, e portanto perturbado como criador, se é certo que só um estado de felicidade é um estado criador. De imediato, o que parece interessar numa pessoa é o seu demonismo, a sua tendência para o injusto. Quando tudo nela tende para a justiça, torna-se difícil prestar-lhe atenção, pois nela tudo é uniforme.
Diz Vieira da Silva que as pessoas não consideravam nela qualquer ângulo original; a sua sociabilidade parecia-lhes extremamente comum e em contradição com o talento que lhe reconheciam. O carácter introvertido, tratando-se de uma mulher, é assim analisado: «ela eleva-se para o que é superior e inclina-se para o que é inferior; ela é a irmã e a companheira da natureza inteira». Como a sua afectividade é menos mudável que o conteúdo do seu espírito, podem considerá-la em desacordo com a criação do seu espírito. E assim se instaura a solidão, resistência e prova duma adaptação superior.
Honrar aqueles que ensinam e que detêm o conhecimento foi outrora uma regra, um mandamento que está hoje parcialmente ofuscado. Parece que o ensino e a sabedoria de alguma coisa se tornaram numa espécie de ofensa e atraem o ressentimento. Mesmo nos mais pequenos detalhes da vida vive-se face à vingança; e a disposição do espírito para criar uma grande obra já não actua como exigência da civilização. Porém, continuará a haver raras pessoas que de facto no silêncio se dedicam a manter na ponta da lei essa exigência. Para que não sejamos privados de vista, pintam; para que não fiquemos surdos, compõem música.
Havia um antiquíssimo conselho que dizia que não se devem saudar os sábios nos lugares de promiscuidade; por isso talvez, no mundo promíscuo do nosso tempo, mal se honram os estudiosos e desviam-se os olhos quando eles se aproximam. O mundo tem sempre os seus ídolos, mas não deixa de dispensar um sentimento algo religioso àquilo que não é acessório do ídolo, ou seja, ao espírito.
Agustina Bessa-Luís, Longos Dias têm Cem Anos 

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