terça-feira, 20 de março de 2012

Entrementes, presenciamos a destruição das nossas veneráveis cidades pelos ataques aéreos; destruição essa que clamaria aos céus, se nós, que a sofremos, não andássemos sobrecarregados de culpa. Mas, como temos esse carrego às nossas costas, o clamor permanece sufocado nos ares, e tal e qual a reza do rei Claudius, «não pode subir ao Céu». Como não soa estranho aquele lamento proferido em nome da Cultura por crimes que nós mesmos provocamos, quando sai da boca dos que entraram no cenário da História, arvorando-se em arautos e promotores de uma barbárie, que, no afã de regenerar o mundo, se deleita com quaisquer atrocidades! Várias vezes a devastação abaladora e arrasante se avizinhou de modo pavoroso do meu retiro. O terrível bombardeio da cidade de Dürer e Willibald Pirkheimer já não era um acontecimento distante, e quando o Juízo Final feria igualmente Munique, ficava eu sentado no meu gabinete, lívido, a tremer da mesma forma que as paredes, as portas, as janelas da casa - e com a mão trémula escrevia a presente biografia (...).
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Com isto quero dizer que a guerra está perdida. Mas esse facto significa mais do que somente uma campanha perdida; significa, na realidade, que nós estamos perdidos, que perdidas estão a nossa causa e a nossa alma, a nossa fé e a nossa história. Tudo se acabou para a Alemanha; acabar-se-á num inominável colapso económico, político, moral e espiritual; em suma, eis o que se esboça. Não quero ter desejado esse desenlace, pois o que nos ameaça são o desespero e a insânia. Não quero nutrir tal desejo, porque a minha compaixão, a minha lastimosa comiseração dedicam-se a este povo infeliz, e quando recordo o seu levantamento e o seu cego fervor, a rebeldia, a erupção, a explosão, a reviravolta, o reinício pretensamente purificador, o renas cimento nacional de há dez anos atrás - quando recordo aquele transe aparentemente sagrado, com o qual, na verdade, indicando o seu carácter falaz, já se mesclavam muita rudeza feroz, muita brutalidade ordinária, muito gozo sórdido de violações, torturas e aviltamentos, e que, para quaisquer pessoas clarividentes, já evidenciava os germes da guerra, de toda esta guerra - quando recordo tudo isso, confrange-se-me o coração em face do formidável investimento de fé, entusiasmo, apaixonada exaltação histórica, efectuado naqueles dias, e que agora deverá esvair-se numa bancarrota jamais igualada. Não, longe de mim ter desejado isto ... E todavia tive de desejá-lo, e sei também que o desejei, que hei-de desejá-lo hoje e saudarei o seu advento, por ódio ao celerado desprezo da razão, à pecaminosa renegação da verdade, ao culto vulgar, extasiado, de uma mitologia de cordel, à culposa confusão entre a degeneração actual e aquilo que existia antes, o abuso cabotino e a abjecta venda em liquidação dos genuínos valores antigos, familiares, fiéis, intrinsecamente alemães, à base dos quais sabujos e mentirosos nos prepararam um filtro intoxicante, susceptível de alienar os sentidos. A gigantesca embriaguez, que de nós, os sempre ávidos de ebriedade, se apossou, quando o bebemos, e na qual, através de anos cheios de uma ilusória vida superior, cometemos um sem-número de actos ignominiosos - cumpre pagarmos por ela. E qual é o preço? Já disse a palavra, pronunciei-a, quando falava do «desespero». Não a repetirei.
Thomas Mann, Doutor Fausto

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