terça-feira, 6 de março de 2012

O despertar nesta cidade (Veneza) é diferente daquele a que estamos habituados. É que o dia nasce em silêncio, num silêncio apenas perturbado por alguma exclamação solta, uma gelosia metálica a ser corrida, o bater de asas dos pombos. Quantas vezes, pensei eu, não estive assim deitado num quarto de hotel, em Viena, Frankfurt ou Bruxelas, a escutar, de sentidos alerta, as mãos sob a cabeça, não o silêncio, como aqui, mas a irrupção do tráfego que antes já me tinha massacrado durante horas. Então é isto, penso eu nessas ocasiões, o novo oceano. Incessantemente, as grandes vagas que cobrem toda a amplitude das cidades, cada vez mais ruidosas, cada vez mais altas, quebram-se numa espécie de frenesim no auge do seu estrépito e correm pelo asfalto e pelas pedras enquanto novos vagalhões se preparam para desabar na barragem do sinal vermelho. Ao longo dos anos fui-me convencendo de que é deste estrondo que agora nasce a vida, a que vem depois de nós e que lentamente nos irá destruindo como nós lentamente destruímos o que já existia muito antes de nós. Irreal, absolutamente irreal, como se estivesse prestes a despedaçar-se, me pareceu portanto o silêncio sobre a cidade de Veneza nessa alvorada do dia de Todos-os-Santos em que o ar branco entrava pelas janelas entreabertas do meu quarto e pairava sobre tudo, envolvendo-me num mar de névoa.
W. G. Sebald, Vertigens. Impressões

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