Linderhof, o pequeno castelo rococó de Luís II, ergue-se entre florestas e montanhas, numa solidão de grandiosa beleza. Nenhuma misantropia real jamais seria capaz de idear outro refúgio mais feérico. É bem verdade que, não obstante a exaltação que a magia do sítio talvez pudesse criar, o gosto que prevalecia no incansável afã construtor daquele fugitivo do mundo - essa expressão de um impulso de glorificar o seu reinado - não deixava de provocar certa consternação. Interrompemos a viagem e, conduzido por um guia, passámos pelos sumptuosos e sobrecarregados gabinetes que constituíam as «salas de estar» desta fantasiosa mansão, onde o depressivo monarca morava, obcecado unicamente pela ideia da sua própria majestade. Ali Bülow devia tocar piano para ele e Kainz fazia ressoar a sua voz insinuante. Nos castelos principescos, a sala do trono costumava ser a divisão mais vasta. Em Linderhof não existe nenhuma. Em vez dela, há o quarto de dormir, de dimensões imponentes, em comparação com a exiguidade dos recintos destinados à estada diurna. A pomposa cama, que solenemente se ergue sobre um estrado, dá a impressão de ser curta em proporção com a sua largura exagerada, e, flanqueada por candelabros dourados, parece um catafalco.
Com o devido interesse, disfarçando alguns meneios de cabeça, contemplámos tudo aquilo. Em seguida, continuámos a nossa jornada a Ettal, enquanto o céu se desanuviava. Graças à abadia beneditina e à igreja barroca que dela faz parte, a arquitectura do lugar goza de sólida fama. Recordo-me de que durante o trajecto e depois, enquanto jantávamos no asseado hotel que defronta o mosteiro, a conversa girou ininterruptamente em torno do, como dizem, «infausto» - porquê infausto? - rei, do qual acabávamos de respirar a excêntrica atmosfera. Somente a visita da igreja interrompeu a discussão, que era essencialmente uma controvérsia entre Rudi Schwerdtfeger e a minha pessoa, quanto à, assim chamada, demência de Luís, à sua incapacidade de governar, com a subsequente destronização e interdição. Para o maior pasmo de Rudi, neguei qualquer justificativa a tudo aquilo e declarei que se tratava apenas de um procedimento brutal de uns filisteus, além de haver nele um quê de politiquice e de intrigas de sucessores.
O violinista defendia a convicção não apenas popular mas também burguesa e oficial, segundo a qual o rei fora um «louco varrido», para usar a expressão de Rudi, de que tanto o acto de o entregar aos psiquiatras e aos guardas de um hospício, como a instauração de uma regência de juízo perfeito tinham correspondido a uma imperiosa necessidade do país. Ele nem queria compreender a possibilidade de qualquer oposição. Segundo costumava fazer em casos deste género, quer dizer, quando enfrentava um ponto de vista demasiado novo, avançava, cheio de indignação, os lábios e cravava os olhos azuis alternadamente no meu olho direito ou esquerdo, enquanto eu continuava a falar. Devo admitir - e percebi-o com alguma surpresa- que o assunto me tornava eloquente, ainda que antes pouco me tivesse ocupado com ele. Notei, porém, que, talvez secretamente, se formara em mim uma opinião definida a seu respeito. A loucura - assim expliquei - é um conceito bastante dúbio, que o burguesote maneja muito arbitrariamente, de acordo com critérios ambíguos. Bastante depressa, bem perto de si mesmo e da sua mediocridade, traçará ele os limites da conduta razoável, e tudo o que os ultrapassar será doidice. Mas, afirmei, a existência de um rei soberano, rodeado de devoção, quase que totalmente isento de crítica ou responsabilidade, pode expandir logicamente a sua dignidade num estilo inacessível a qualquer particular, por mais rico que este seja, e que oferece às inclinações fantásticas, às necessidades e às aversões nervosas, às paixões esquisitas e aos desejos desconcertantes do seu portador possibilidades cujo aproveitamento soberbo, integral, facilmente assumirá o aspecto da demência. Abaixo desse nível supremo, mortal algum poderia dar-se ao luxo da criação de retiros dourados em sítios selectos de magnificência paisagística, assim como Luís o fez. Esses castelos são, sem dúvida alguma, monumentos da antropofobia real. Mas, se normalmente, no contacto com exemplares da média da nossa espécie, não é lícito considerar a mera hipocondria como sintoma de loucura, porque será permitido emitir um julgamento desses justamente num caso em que tal repulsa se manifestou no ambiente de um rei?
- Ora - objectou Schwerdtfeger -, seis alienistas diplomados, competentes, constataram oficialmente a insanidade total do soberano e acharam necessário que ele fosse internado!
- Aqueles cientistas dóceis - repliquei - agiram assim, precisamente, porque haviam sido convocados com esse propósito. Agiram assim, sem jamais terem visto Luís em pessoa, sem o terem «examinado» segundo os seus métodos, sem sequer terem falado com o paciente. É bem verdade que qualquer conversa com ele sobre Música ou Poesia também teria bastado para firmar entre esses beócios o diagnóstico da loucura. Mas, à base do seu parecer, retiraram a um homem certamente diferente da norma, mas nem por isso demente, o direito de dispor de si próprio. Rebaixaram-no à categoria de um paciente psicopata e encerraram-no num castelo lacustre, com grades nas janelas e sem maçanetas nas portas. Que ele não tenha suportado essa humilhação, que, ao encaminhar-se para a liberdade ou para a morte, haja arrastado consigo para o túmulo o seu médico-carcereiro, esse facto comprova o seu sentido de dignidade e não a sua alienação mental. E demonstra-o igualmente a atitude do seu pessoal, que o adorou e esteve disposto a lutar por ele, assim como também o evidencia o fervoroso amor que a população rural devotou ao seu «querido rei». Quando esses camponeses, à noite, o viam passar pelas suas montanhas, num trenó dourado, precedido por cavaleiros, à luz de tochas, ele sozinho, envolto em peles, não o tomavam por louco. Consideravam-no um rei condizente com os seus espíritos rudes e todavia devaneadores. E se ele tivesse conseguido atravessar o lago a nado, como evidentemente pretendia fazer, tê-lo-iam defendido com malhos e forcados contra a Medicina e a Política.
- Mas - protestou Rudi - a sua mania de esbanjar dinheiro era nitidamente mórbida e com o tempo tornou-se insuportável. A sua incapacidade de governar resultou simplesmente da falta de vontade de exercer o governo. Ele apenas conservava o sonho de ser rei, mas recusava-se a cumprir a sua tarefa segundo preceitos razoáveis. Nenhum Estado pode viver assim.
- Asneiras, Rudolf! Um primeiro-ministro de qualidades normais bastaria para governar um Estado federal moderno, mesmo que o rei fosse demasiado sensível para aguentar as fisionomias dele e dos seus colegas. A Baviera não teria sido levada à ruína, se tivessem permitido que Luís continuasse a entregar-se aos seus solitários caprichos. A sofreguidão dissipadora de um rei não tem nenhuma importância. Isso não passa de disparates, mentiras e pretextos. Veja, o dinheiro permaneceu no país. Empreiteiros e douradores engordaram, alimentados pelas construções fabulosas. Sobrevém que os castelos há muito se tornaram mais que rentáveis, em virtude do preço de entrada que se cobra à curiosidade romântica dos turistas de ambos os mundos, ansiosos por visitá-los ...
Thomas Mann, Doutor Fausto
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