quinta-feira, 19 de abril de 2012

O teatro Kathakali é uma viagem sofisticada ao mundo da arte. A ida às backwaters de Kerala é uma viagem não menos surpreendente. Olhando esta imensa massa de água, quilómetros e quilómetros quadrados de rios desembocando em lagos e canais navegáveis ligados entre si e paralelos à orla marítima, corre-se o risco de acreditar num Éden terrestre com nada menos que novecentos quilómetros de comprido. Chamam-lhe País dos Deuses ou, mais prosaicamente, a Tigela de Arroz da Índia. Os dados hidrográficos falam em quarenta e quatro rios e vinte e dois lagos, mas é impossível distinguir onde principia e acaba cada lago nestes contíguos cursos de água que percorremos desde o extremo sul do lago Vembanad, desde a pequena cidade costeira de Allappuzha ou Alleppey, a bordo de dois barcos de dois andares e de convés aberto, com bancos corridos no piso de cima. Por entre as diferentes declinações dos leques das palmeiras, dos verdes de coqueiros e cajueiros, a súbita brancura de uma igreja, de uma escola de aldeia, tabuletas indicando o local de um ashram, mulheres carregando cântaros, homens com fardos à cabeça caminhando por estreitos carreiros à beira-lago, corvos limpando o lixo humano, uma vida decerto menos arcádica do que parece. Sentado na sua barca a remos, um guardador de patos vigiava como um pastor de ovelhas o seu bando de centenas de aves grasnantes, mergulhando e agitando as asas na placidez de uma enseada, sob um sol demorado. Manchas pardas de grandes toros de árvores abatidas flutuavam junto à margem, crianças nadavam, um ou outro pescador deslizava na sua quase-gôndola. Passámos por uma canoa carregada de rolos de cairo abrindo atrás de si um leque breve de ondas leves, e uma barcaça de estudantes de ambos os sexos, com as fardas dos colégios vitorianos de há dois séculos, acenando para nós com o entusiasmo com que outros colegiais, noutras situações e noutros lugares, aqui como em Goa, sempre acenaram à nossa passagem. Uma cordialidade inusitada, fora de moda, costumes que há muito deixaram de ser os nossos. Cruzou-se connosco um barco estreito e longo, de proa vagamente veneziana, manobrado por um homem ao leme e outro à ré. Entre ambos, uma cobertura arredondada, com paredes de fibra de cairo, canas de bambu calafetadas e janelas sem vidraças. Outrora usados no transporte de arroz, estes barcos foram transformados com fins turísticos em houseboats, casas flutuantes para viagens que podem durar dias ou horas, e em que o homem do leme, com ou sem ajudante, se encarrega de cozinhar, servir e pilotar.
Almeida Faria, O Murmúrio do Mundo

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