quarta-feira, 11 de abril de 2012

O teu pendor, meu amigo, para ir em busca do objectivo, da chamada verdade, e para considerar o subjectivo, a vivência pura, desprovidos de valor, é deveras próprio de um pequeno-burguês, e cumpre superá-lo. Tu vês-me, logo, para ti, existo. Vale então a pena perguntar se existo realmente? Não será real aquilo que produz efeitos? Não serão verdade a vivência e o sentimento? O que te exalta, o que aumenta a tua sensação de força e poder e domínio, eis a verdade, com os diabos! Ainda que, do ponto de vista da virtude, seja dez vezes mentira! O que digo significa que uma inverdade susceptível de intensificar as energias equivale a qualquer verdade esterilmente virtuosa. E tenho para mim que uma doença criativa, propiciadora de génio, uma doença capaz de cavalgar por cima de quaisquer obstáculos, saltando em audaciosa ebriedade de rochedo em rochedo, agrada mais à vida do que a saúde que se arrasta a pé. Nunca ouvi asneira maior do que a que afirma que do mórbido só pode provir o mórbido. A vida não está cheia de escrúpulos, e não se interessa nem um bocadinho pela moral. Apossa-se do audaz produto da doença, devora-o, digere-o, e, no momento em que o assimilar, ele transformar-se-á em saúde. Diante do facto da eficiência vital, meu querido amigo, extingue-se qualquer distinção entre doença e saúde. Toda uma horda, toda uma geração de rapazes receptivos, sadios como ninguém, precipitam-se sobre a obra do génio mórbido, do homem que se tornou um génio pela doença. Admiram-na, exaltam-na, glorificam-na, levam-na consigo, transformam-na entre si, legam-na à Cultura que não se alimenta apenas de pão feito em casa, mas também de dons e venenos fornecidos pela farmácia «Aos Beatos Apóstolos». Quem te diz isto é Sammael, o que nunca usa o nome corrompido à maneira do senhor Ballhorn. Ele garante-te que, ao fim dos anos que te concede a ampulheta, a tua sensação de poder e de magnificência ultrapassará cada vez mais as dores da Pequena Sereia e, finalmente, incrementar-se-á, alcançando a impressão de triunfante bem-estar, de jubilosa euforia e de uma vida divina. Mas este é apenas o lado subjectivo do negócio, e sei muito bem que isto não te bastaria e que o acharias pouco sólido. Quero, pois, que saibas que te asseguramos a eficiência vital daquilo que realizarás com a nossa ajuda. Tu serás um líder, imprimirás o ritmo à marcha que conduz ao futuro; o teu nome será adorado pela rapaziada, que, graças à tua loucura, já não precisará de enlouquecer. À base da tua loucura, os jovens hão-de nutrir-se em plena saúde, e no íntimo deles tu serás sadio. Compreendes? Não somente vencerás as dificuldades estorvadoras dos tempos; não, os próprios tempos, a fase da Cultura e o seu culto serão superados por ti; terás a audácia de uma barbárie duplamente bárbara, por ocorrer após o humanismo, após o refinamento burguês e qualquer tratamento de canal que se possa imaginar. Acredita no que te digo: essa barbárie entende mais, até mesmo de teologia, do que uma cultura distanciada do culto, a qual na religião visa também apenas cultura e humanismo, e não o excesso, o paradoxo, a paixão mística, a aventura inteiramente avessa à burguesia. Espero que não fiques pasmado com o facto de Lúcifer te falar de religião. Com a breca! Só desejo saber quem, a não ser eu, te poderá falar dela hoje em dia. Não um teólogo liberal, de certeza! Afinal de contas, sou agora quase o único a conservá-la! A quem quererás conceder uma existência teológica a não ser a mim? E quem poderá levar uma existência teológica sem mim? A Religião é o meu elemento, tão indiscutivelmente como deixou de ser matéria da cultura burguesa. A Cultura, desde que renegou o culto e se pôs a reverenciar-se a si mesma, não passa de um refugo, e, depois de uns meros quinhentos anos de tal situação, está tudo tão farto e tão cansada dela, como se tivesse engolido, salva venia, panelas cheias de tal comida ...
Thomas Mann, Doutor Fausto

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