quinta-feira, 19 de abril de 2012

O visitante ocidental que pela primeira vez chega a Goa e Cochim enfrentará provavelmente a vertigem do caos à sua volta e dentro de si. Quando começa a familiarizar-se com a estonteante exuberância e com as contradições coexistentes, quando julga começar a entender a complexidade das castas, dos cultos e costumes tão diferentes, quando começa a fixar nomes, imagens, atributos dos deuses, tudo lhe foge de súbito, tudo se torna de novo confuso, como se o véu de Maia voltasse a cobrir a indecifrável irrealidade da Índia real.

Quem regressa de uma terra tão diversa traz fragmentos de caras, casas, ruas, cheiros, quartos, uma carga de imagens que, na alfândega-roleta do lembrar e esquecer, deveria pagar excesso de bagagem. Vim carregado de cores e de cansaço mas inteiro e em estado razoável, bem melhor dos que outrora, contentes por regressarem, contavam

Lá vos digo que há fadigas
tantas mortes, tantas brigas
e perigos descompassados
que assim vimos destroçados
pelados como formigas.

Vim ainda carregado de algo mais: um outro modo de olhar, a certeza de não pertencer àquele tipo de viajante que não fala do que vê, mas do que imagina ou deseja ver. Trouxe comigo um bloco confusamente escrevinhado, uma curiosidade acrescentada, uma crescente descrença na elegância da descrença. E tornei-me mais atento à infindável memória do mundo, mais capaz de escutar o incansável murmúrio do mundo.
Almeida Faria, O Murmúrio do Mundo

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