quarta-feira, 11 de abril de 2012

Schilddknapp mostrara-se céptico quanto à «desromantização» da Música. Na opinião dele, esta estava tão profunda e essencialmente arreigada ao Romantismo, que lhe seria difícil renegá-la, sem sofrer graves perdas naturais. Ao que replicava Adrian:
- Dar-lhe-ia razão de bom grado, se você usasse o termo «Romantismo» na acepção de um calor de sentimentos que a Música hoje rejeita em prol da intelectualidade técnica. Talvez se trate de uma renegação de si própria. Mas o que qualificávamos de purificação do complicado, a fim de que ele se tornasse simples, é, no fundo, a mesma coisa que a reconquista da vitalidade e do vigor sentimental. Se fosse possível... Quem o conseguir ... Como o formularias? - Interrompendo-se, dirigia-se a mim, e dando a si mesmo a resposta, prosseguia: - Certamente chamarias a isso «abertura de caminho». Ora, quem conseguir tal abertura, encontrando a saída da frieza espiritual rumo a um mundo perigoso de sentimentos novos, bem poderá ser reputado redentor da Arte. Redenção? - continuou, encolhendo nervosamente os ombros. - Uma palavra romântica, e uma· palavra de harmonista, a senha da bem-aventurança que a cadência provoca na música harmónica. Não é engraçado que a Música, durante algum tempo, tenha acreditado ser um meio de redenção, apesar de ela própria, como qualquer arte, carecer de redenção; redenção de um isolamento solene, que tem a sua origem na emancipação da Cultura, dessa Cultura elevada a substituta da Religião; redenção da sua convivência exclusiva com uma elite refinada de «público», e que em breve cessará de existir, de modo que então ficará totalmente sozinha, mortalmente sozinha, a não ser que encontre o caminho que a conduza ao «povo», isto é, em termos nada românticos, o caminho dos homens?
Proferira estas frases e perguntas num jacto, a meia voz, em tom de conversa, mas com um quê de oculta vibração, que só se compreendeu bem quando concluiu os seus pensamentos:
- Toda a inspiração vital da Arte, creiam-me, há-de alterar-se, tomando o rumo da modéstia e da jovialidade. Isso é inevitável. Será uma evolução benéfica. Boa parte das ambições melancólicas se desprenderá dela, e uma nova inocência, ou até mesmo uma genuína inocuidade, ser-lhe-á peculiar. O futuro verá nela, ela mesma verá em si novamente a serva de uma colectividade, que abrangerá muito mais do que apenas «instrução» e não terá, mas talvez seja, cultura. Para nós, é difícil imaginá-lo, e todavia isso existirá, será totalmente natural: uma arte sem sofrimento, psiquicamente sã, desprovida de solenidade, nada triste, sociável, que tratará por tu a humanidade...
Parou de falar, e nós três, comovidos, guardámos silêncio. É doloroso, mas também reconfortante ouvir como o solitário evoca a colectividade e o inabordável, a sociabilidade. Pesasse embora a toda a minha emoção, eu desaprovava, no âmago da minha alma, a sua manifestação. Sentia-me realmente insatisfeito com o meu amigo. O que ele acabava de dizer não estava de acordo com a sua natureza, o seu orgulho, a sua soberba, se cabe aqui usar esse termo; qualidades que eu amava e a Arte tem o direito de reclamar para si. Arte é espírito, e o espírito não precisa, em absoluto, de se sentir obrigado a servir a sociedade, a colectividade. A meu ver, não tem direito a fazê-lo, devido à sua liberdade e à sua nobreza. Uma arte que «se mete com o povo», fazendo suas as necessidades das massas, do zé-povinho, dos ignorantões, cai na miséria. Prescrever-lhe isso como um dever, admitindo-se, talvez, por razões políticas, unicamente uma arte que a gentinha possa compreender, é mesmo o cúmulo da grosseria e equivale a assassinar o espírito. Este - eis a minha firme convicção - pode empreender os mais audaciosos, os mais incontidos avanços, as tentativas e pesquisas menos acessíveis às multidões, e todavia ter a certeza de servir, de um modo elevado, indirectamente o homem, e à la longue até os homens.
Obviamente, por índole, Adrian devia ter a mesma opinião. Mas agradava-lhe renegá-la, e provavelmente eu enganava-me redondamente ao interpretar as suas palavras como uma negação da sua soberba. Era de supor que elas fossem antes um esforço de se mostrar afável, proveniente da suprema altivez.
Thomas Mann, Doutor Fausto




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