sábado, 12 de maio de 2012


O que é um «clássico»? Qual é a força motriz da sua persistência ao longo dos tempos, através das línguas e das sociedades em constante transformação? O que é que autoriza as batidas da bengala branca do cego Homero na Dublin de Joyce?
Eu defino um «clássico», seja na literatura, na música, nas artes ou na filosofia, como uma forma significante que nos «lê». Lê-nos mais do que nós o lemos (ouvimos, percepcionamos). Não há nada de paradoxal, muito menos de místico, nesta definição. De cada vez que entramos nele, o clássico questiona-nos. Desafia os recursos da nossa consciência e do nosso intelecto, da mente e do corpo (grande parte da resposta estética primária, e até da intelectual, é física). O clássico perguntar-nos-á: «compreendeste?» «re-imaginaste com responsividade?»; «estás preparado para agir sobre as transformações, sobre as possibilidades de uma outra existência, mais enriquecida, que eu formulei?».
(...)
É o esforço cumulativo, argumentativo e autocorrectivo de visão e revisão que faz com que qualquer proposta de compreensão, qualquer «descodificação» e interpretação (sendo estas duas estritamente inseparáveis), sejam provisórias e aproximadas. O atributo característico da vulgaridade, da obra efémera (seja na ( música, na literatura ou nas artes) é precisamente o de poder ser classificada e compreendida de uma vez por todas. Num sentido perfeitamente racional e pragmático, um acto sério de significação - verbal, imagético, tonal - não pode ser esgotado pelo esforço interpretativo. Não pode ser anatomizado nem fixado. Cada leitura, no sentido lato do termo, cada circunscrição hermenêutica, permanece provisória, incompleta e possivelmente errónea. Nenhum dicionário pode ser definitivo relativamente à língua. As palavras mudam as suas definições e usos - o seu Sprachfeld, na sugestiva expressão alemã - ao longo da história da língua, através das regiões, faixas etárias e estratos sociais. 
(...)
Mas repito: toda a compreensão fica aquém. É como se o poema, o quadro, a sonata, circunscrevessem em seu redor um último círculo, um espaço para uma autonomia inviolável. Eu defino o clássico como aquilo em redor do qual esse espaço é eternamente profícuo. Questiona-nos. Exige-nos que tentemos mais uma vez. Faz com que as nossas malformações de leitura, as nossas parcialidades e falhas de compreensão não sejam um caos relativista, um «vale tudo», mas um aprofundamento. As interpretações válidas, a crítica que deve ser tomada a sério, são aquelas que tornam visíveis as suas limitações e os seus fracassos. Por sua vez, esta visibilidade contribui para que se tome manifesta a inexauribilidade do objecto. A Sarça ardia com mais fulgor justamente porque o seu intérprete não se podia aproximar demasiado dela.
George Steiner, Errata:revisões de uma vida 

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