O que é um «clássico»?
Qual é a força motriz da sua persistência ao longo dos tempos,
através das línguas e das sociedades em constante transformação?
O que é que autoriza as batidas da bengala branca do cego Homero na
Dublin de Joyce?
Eu defino um «clássico»,
seja na literatura, na música, nas artes ou na filosofia, como uma
forma significante que nos «lê». Lê-nos mais do que nós o lemos
(ouvimos, percepcionamos). Não há nada de paradoxal, muito menos de
místico, nesta definição. De cada vez que entramos nele, o
clássico questiona-nos. Desafia os recursos da nossa consciência e
do nosso intelecto, da mente e do corpo (grande parte da resposta
estética primária, e até da intelectual, é física). O clássico
perguntar-nos-á: «compreendeste?» «re-imaginaste com
responsividade?»; «estás preparado para agir sobre as
transformações, sobre as possibilidades de uma outra existência,
mais enriquecida, que eu formulei?».
(...)
É o esforço cumulativo,
argumentativo e autocorrectivo de visão e revisão que faz com que
qualquer proposta de compreensão, qualquer «descodificação» e
interpretação (sendo estas duas estritamente inseparáveis), sejam
provisórias e aproximadas. O atributo característico da
vulgaridade, da obra efémera (seja na ( música, na literatura ou
nas artes) é precisamente o de poder ser classificada e compreendida
de uma vez por todas. Num sentido perfeitamente racional e
pragmático, um acto sério de significação - verbal, imagético,
tonal - não pode ser esgotado pelo esforço interpretativo. Não
pode ser anatomizado nem fixado. Cada leitura, no sentido lato do
termo, cada circunscrição hermenêutica, permanece provisória,
incompleta e possivelmente errónea. Nenhum dicionário pode ser
definitivo relativamente à língua. As palavras mudam as suas
definições e usos - o seu Sprachfeld, na sugestiva expressão alemã
- ao longo da história da língua, através das regiões, faixas
etárias e estratos sociais.
(...)
Mas repito: toda a
compreensão fica aquém. É como se o poema, o quadro, a sonata,
circunscrevessem em seu redor um último círculo, um espaço para
uma autonomia inviolável. Eu defino o clássico como aquilo em redor
do qual esse espaço é eternamente profícuo. Questiona-nos.
Exige-nos que tentemos mais uma vez. Faz com que as nossas
malformações de leitura, as nossas parcialidades e falhas de
compreensão não sejam um caos relativista, um «vale tudo», mas um
aprofundamento. As interpretações válidas, a crítica que deve ser
tomada a sério, são aquelas que tornam visíveis as suas limitações
e os seus fracassos. Por sua vez, esta visibilidade contribui para
que se tome manifesta a inexauribilidade do objecto. A Sarça ardia
com mais fulgor justamente porque o seu intérprete não se podia
aproximar demasiado dela.
George Steiner, Errata:revisões de uma vida
Sem comentários:
Enviar um comentário