sexta-feira, 18 de maio de 2012

Todos nós somos hóspedes da vida. Não há nenhum ser humano que saiba o significado da sua criação, excepto ao nível mais primitivo e biológico. Não há nenhum homem nem nenhuma mulher que saiba qual o objectivo (se é que existe ... ), qual o significado possível de ter sido «atirado» para o mistério da existência. Por que é que há algo em vez de nada? Por que é que eu existo? Somos hóspedes deste pequeno planeta, de uma urdidura infinitamente complexa, quiçá fortuita, de processos e mutações evolutivas que, em inúmeros estádios, poderia ter seguido um outro curso ou testemunhado a nossa extinção. Acabámos, aliás, por nos tornar hóspedes vândalos, produzindo lixo, explorando e destruindo outras espécies e recursos. Estamos a transformar rapidamente este ambiente extraordinariamente belo e intricadamente perfeito, e inclusive o espaço sideral, numa lixeira venenosa. Há caixotes do lixo na Lua. Por mais inspirado que seja o movimento ecológico que, juntamente com a emergente percepção dos direitos das crianças e dos animais, é dos poucos capítulos esclarecidos do nosso século, é bem possível que tenha vindo demasiado tarde.
Todavia, este vândalo não deixa de ser um hóspede numa casa do ser que não construiu e cujo desígnio e arquitectura lhe escapam. Agora temos de aprender a ser os hóspedes uns dos outros naquilo que resta desta terra sobrepovoada e degradada. As nossas guerras, as nossas limpezas étnicas, os arsenais de massacre que prosperam mesmo nos estados mais pobres, são territoriais. As ideologias e os ódios mútuos a que dão origem são territórios da mente. Desde sempre, os homens têm-se atacado uns aos outros por causa de um pedaço de terra, sob diferentes trapos coloridos empunhados como bandeiras, a propósito de ténues diferenças na língua e no dialecto. Hamlet interroga-se ao ver um exército passar: porque marcha ele para uma batalha sangrenta? Será para conquistar algo de exaltante ou de profícuo? Responde-lhe um capitão:

Truly to speak, and with no addition,
We go to gain a little patch of ground
That hath in it no profit but the name.
To pay five ducats, five, I would not farm it;
Nor will it yield to Norway or the Pole
A ranker rate should it be sold in fee .

A História tem assistido a um investimento interminável de ódios recíprocos por motivos bastante mesquinhos e irracionais. Por uma qualquer inspiração lunática, certas comunidades, por exemplo nos Balcãs ou em África, são capazes de explodir em apartheid e genocídio depois de terem vivido juntas durante séculos ou décadas. As árvores têm raízes, os seres humanos têm pernas. Com as quais podem atravessar o arame farpado de fronteiras idiotas, com as quais podem visitar e viver como hóspedes entre o resto da humanidade. Existe uma simbologia fundamental nas lendas que abundam na Bíblia, mas também nas mitologias gregas ou outras, do estranho que ao sol-posto bate ao portão após a sua viagem. Trata-se frequentemente do toque de um deus ou de um emissário divino que põe à prova a nossa capacidade de acolhimento. Quero acreditar que esses visitantes são os verdadeiros seres humanos em que devemos tentar tornar-nos se queremos sobreviver. 
George Steiner, Errata: revisões de uma vida

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