quinta-feira, 7 de junho de 2012


(...) Apenas uns poucos pensadores e «sensores» conseguiram dizer-nos, através da linguagem e de um raciocínio discursivo elaborado, alguma coisa inovadora ou definidora sobre «o que é a música». Formam uma constelação fascinante: Agostinho, Rousseau, Kierkegaard, Schopenhauer, Nietzsche, Adorno. Uma escassez selecta. Poderá parecer-nos quase escandalosamente rara no que diz respeito a um fenómeno de uma realidade tão manifesta e universal como a música; a um fenómeno sem o qual, para inúmeros homens e mulheres, esta terra devastada e o nosso trânsito nela seriam provavelmente insuportáveis. Do modo como eu vejo («ouço») as coisas, uma das maneiras de saldarmos a nossa dívida para com a música, para com o seu papel na nossa vida, é continuar a perguntar. Como é possível, questionou-se Berkeley, concebermos de algum modo o inconcebível, sentirmo-nos atraídos por algo que nega as palavras, as gramáticas do entendimento discursivo? A música é uma instância evidente desta questão. Face à música, as maravilhas da linguagem são também as suas frustrações.
Não se trata apenas do desafio da radical intraduzibilidade da música. Mesmo quando são mais íntimas, as relações entre a música e a linguagem acham-se perturbadas por conflitos espinhosos. Diz-nos a antropologia filosófica, nas pessoas de Vico e Rousseau, que a música antecedeu a fala. Os pássaros cantam, bem como possivelmente certos mamíferos marinhos (apesar de só podermos suspeitar, sem termos a certeza, de que as suas canções comunicam significados específicos). Os ventos, as dunas e as rochas podem cantar. Já os ouvi no Negev quando a noite começa a arrefecer. Schopenhauer afirma que se o nosso universo acabasse, persistiria a música - uma conjectura inconcebível a um nível racional ou empírico. Assim, a música seria o alfa e o ómega do Sein, do próprio ser. As suas formas em movimento são mais imediatas e mais livres do que as da linguagem. Através da inversão, do contraponto, da simultaneidade polifónica, a música pode albergar contradições, alterações de tempo e a coexistência dinâmica, dentro do mesmo movimento abrangente, de modos mutuamente contraditórios e sensações completamente diversas. Por outro lado, é inerente à linguagem, às suas fundações generativas, uma abdicação da variedade e das autocontradições do mundo. Seja ele surrealista, sem sentido ou disparatado, elevado até aos limites do êxtase visionário, o discurso verbal permanece linear e sequencial no tempo. Está algemado à avareza da lógica, com a sua disposição causal, a sua algo redutora segmentação do tempo e da percepção em passado, presente e futuro. Princípios de identidade, pontuações frásicas (as provas matemáticas podem ter uma extensão infinita) e axiomas de continuidade tornam despóticas a fala e a escrita - por mais polissémicas que sejam as palavras, por mais subtil e animada de efabulação que seja a nossa expressão do imaginário. Falamos em tons ricos mas monótonos. A nossa poesia é ensombrada pela música que deixou para trás. Orfeu fica reduzido a poeta quando olha para trás, com a impaciência da razão, para uma música mais forte do que a morte.
Desde essa fatalidade, a palavra procurou domesticar a canção e rivalizar com ela. Dedicou-se a imitar meios musicais que pudesse extrair de si própria. Conhece o ritmo, a cadência, as sonoridades, os efeitos de eco, as mudanças de tom, as variações temáticas. Consegue, de modo «compassado» (para empregar um termo sugestivo de uma rubrica musical e coreográfica), modulações de um registo e modo de energia para outro. Tem os seus graves e os seus baixos, os seus sussurros e os seus pontos de pedal, vozes retóricas, toques de clarim e rufares de tambor. Mallarmé era um virtuoso dos instrumentos de madeira; Hopkins da percussão. Mas estes são legados imperfeitos e empréstimos «por analogia». Quando as palavras são feitas para a música, quando se compõe música para um texto, surge sempre o conflito primário. Em qualquer Lied, cantata, discurso musical coral ou operático (Sprechgesang, no sentido de uma categoria geral), as tensões, as disputas agónicas são palpáveis. Consciente ou inconscientemente, a música tenta recuperar a sua totalidade, esvaziar o texto de qualquer sentido léxico-gramatical traduzíve1. Procura vocalizar completamente a fonética, as sílabas significantes da linguagem. As palavras deverão dissolver-se em puros vocalises. Por sua vez, a letra, o libretto verbal, o passo bíblico pretende atingir a paridade ou mesmo a proeminência. A música deverá ser acompanhamento. Está ali para decorar, para projectar, para sublinhar e «materializar» emoções, reflexos de sensibilidade e conteúdos semânticos que são de natureza linguística. Contudo, a música e a dança são em si mesmas movimentos e figurações primordiais do espírito humano que anunciam uma ordem de existência mais próxima do mistério da criação do que a linguagem. Nelas ouvimos e percepcionamos aquilo que a actual cosmologia denomina de «ruídos de fundo», «radiações de fundo» da primeira irrupção do vazio. À gramática subjazem as fragmentações e, num sentido vital, as limitações da racionalidade cerebral, a queda do homem na lógica.
As duas forças, a da música e da linguagem, fundamentalmente conflituosas, encontram-se na voz humana quando canta. Quando tenta definir a espantosa maravilha de uma boca cantante (essa boca cujo canto inextinguível sobrevive à morte e decapitação de Orfeu), a linguagem apenas consegue produzir abstracções e imagens. A canção é simultaneamente a mais carnal e a mais espiritual das realidades. Serve-se do diafragma e da alma. Pode, logo às primeiras notas, levar o ouvinte ao desespero ou transportá-lo para o êxtase. A voz cantante pode desregular ou sarar a psique com uma só cadência. A nível orgânico, o canto humano aproxima-nos mais da animalidade do que qualquer outra manifestação. Messiaen joga com esta proximidade. A bestialidade literal da política do século xx, a regressão à desumanidade, grunhe e grita pela boca do ídolo pop e da estrela de rock. São, quer queiramos quer não, arautos da verdade. No outro extremo do espectro, uma voz sussurrante, como a do Winterreise de Schubert ou a canção da noite na Terceira de Mahler, aproxima-se mais das fronteiras da alteridade, toca de modo mais íntimo a terra incognita de uma humanidade que se excede a si própria, do que provavelmente qualquer outra experiência (exceptuando a do místico, que é sempre incerta). A canção leva-nos a origens onde nunca estivemos. 
George Steiner, Errata: revisões de uma vida

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