(...) Apenas uns poucos
pensadores e «sensores» conseguiram dizer-nos, através da
linguagem e de um raciocínio discursivo elaborado, alguma coisa
inovadora ou definidora sobre «o que é a música». Formam uma
constelação fascinante: Agostinho, Rousseau, Kierkegaard,
Schopenhauer, Nietzsche, Adorno. Uma escassez selecta. Poderá
parecer-nos quase escandalosamente rara no que diz respeito a um
fenómeno de uma realidade tão manifesta e universal como a música;
a um fenómeno sem o qual, para inúmeros homens e mulheres, esta
terra devastada e o nosso trânsito nela seriam provavelmente
insuportáveis. Do modo como eu vejo («ouço») as coisas, uma das
maneiras de saldarmos a nossa dívida para com a música, para com o
seu papel na nossa vida, é continuar a perguntar. Como é possível,
questionou-se Berkeley, concebermos de algum modo o inconcebível,
sentirmo-nos atraídos por algo que nega as palavras, as gramáticas
do entendimento discursivo? A música é uma instância evidente
desta questão. Face à música, as maravilhas da linguagem são
também as suas frustrações.
Não se trata apenas do
desafio da radical intraduzibilidade da música. Mesmo quando são
mais íntimas, as relações entre a música e a linguagem acham-se
perturbadas por conflitos espinhosos. Diz-nos a antropologia
filosófica, nas pessoas de Vico e Rousseau, que a música antecedeu
a fala. Os pássaros cantam, bem como possivelmente certos mamíferos
marinhos (apesar de só podermos suspeitar, sem termos a certeza, de
que as suas canções comunicam significados específicos). Os
ventos, as dunas e as rochas podem cantar. Já os ouvi no Negev
quando a noite começa a arrefecer. Schopenhauer afirma que se o
nosso universo acabasse, persistiria a música - uma conjectura
inconcebível a um nível racional ou empírico. Assim, a música
seria o alfa e o ómega do Sein, do próprio ser. As suas
formas em movimento são mais imediatas e mais livres do que as da
linguagem. Através da inversão, do contraponto, da simultaneidade
polifónica, a música pode albergar contradições, alterações de
tempo e a coexistência dinâmica, dentro do mesmo movimento
abrangente, de modos mutuamente contraditórios e sensações
completamente diversas. Por outro lado, é inerente à linguagem, às
suas fundações generativas, uma abdicação da variedade e das
autocontradições do mundo. Seja ele surrealista, sem sentido ou
disparatado, elevado até aos limites do êxtase visionário, o
discurso verbal permanece linear e sequencial no tempo. Está
algemado à avareza da lógica, com a sua disposição causal, a sua
algo redutora segmentação do tempo e da percepção em passado,
presente e futuro. Princípios de identidade, pontuações frásicas
(as provas matemáticas podem ter uma extensão infinita) e axiomas
de continuidade tornam despóticas a fala e a escrita - por mais
polissémicas que sejam as palavras, por mais subtil e animada de
efabulação que seja a nossa expressão do imaginário. Falamos em
tons ricos mas monótonos. A nossa poesia é ensombrada pela música
que deixou para trás. Orfeu fica reduzido a poeta quando olha para
trás, com a impaciência da razão, para uma música mais forte do
que a morte.
Desde essa fatalidade, a
palavra procurou domesticar a canção e rivalizar com ela.
Dedicou-se a imitar meios musicais que pudesse extrair de si própria.
Conhece o ritmo, a cadência, as sonoridades, os efeitos de eco, as
mudanças de tom, as variações temáticas. Consegue, de modo
«compassado» (para empregar um termo sugestivo de uma rubrica
musical e coreográfica), modulações de um registo e modo de
energia para outro. Tem os seus graves e os seus baixos, os seus
sussurros e os seus pontos de pedal, vozes retóricas, toques de
clarim e rufares de tambor. Mallarmé era um virtuoso dos
instrumentos de madeira; Hopkins da percussão. Mas estes são
legados imperfeitos e empréstimos «por analogia». Quando as
palavras são feitas para a música, quando se compõe música para
um texto, surge sempre o conflito primário. Em qualquer Lied,
cantata, discurso musical coral ou operático (Sprechgesang,
no sentido de uma categoria geral), as tensões, as disputas agónicas
são palpáveis. Consciente ou inconscientemente, a música tenta
recuperar a sua totalidade, esvaziar o texto de qualquer sentido
léxico-gramatical traduzíve1. Procura vocalizar completamente a
fonética, as sílabas significantes da linguagem. As palavras
deverão dissolver-se em puros vocalises. Por sua vez, a
letra, o libretto verbal, o passo bíblico pretende atingir a
paridade ou mesmo a proeminência. A música deverá ser
acompanhamento. Está ali para decorar, para projectar, para
sublinhar e «materializar» emoções, reflexos de sensibilidade e
conteúdos semânticos que são de natureza linguística. Contudo, a
música e a dança são em si mesmas movimentos e figurações
primordiais do espírito humano que anunciam uma ordem de existência
mais próxima do mistério da criação do que a linguagem. Nelas
ouvimos e percepcionamos aquilo que a actual cosmologia denomina de
«ruídos de fundo», «radiações de fundo» da primeira irrupção
do vazio. À gramática subjazem as fragmentações e, num sentido
vital, as limitações da racionalidade cerebral, a queda do homem na
lógica.
As duas forças, a da
música e da linguagem, fundamentalmente conflituosas, encontram-se
na voz humana quando canta. Quando tenta definir a espantosa
maravilha de uma boca cantante (essa boca cujo canto inextinguível
sobrevive à morte e decapitação de Orfeu), a linguagem apenas
consegue produzir abstracções e imagens. A canção é
simultaneamente a mais carnal e a mais espiritual das realidades.
Serve-se do diafragma e da alma. Pode, logo às primeiras notas,
levar o ouvinte ao desespero ou transportá-lo para o êxtase. A voz
cantante pode desregular ou sarar a psique com uma só cadência. A
nível orgânico, o canto humano aproxima-nos mais da animalidade do
que qualquer outra manifestação. Messiaen joga com esta
proximidade. A bestialidade literal da política do século xx, a
regressão à desumanidade, grunhe e grita pela boca do ídolo pop
e da estrela de rock. São, quer queiramos quer não, arautos
da verdade. No outro extremo do espectro, uma voz sussurrante, como a
do Winterreise de Schubert ou a canção da noite na Terceira
de Mahler, aproxima-se mais das fronteiras da alteridade, toca de
modo mais íntimo a terra incognita de uma humanidade que se
excede a si própria, do que provavelmente qualquer outra experiência
(exceptuando a do místico, que é sempre incerta). A canção
leva-nos a origens onde nunca estivemos.
George Steiner, Errata: revisões de uma vida
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